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Atualmente, 18 de fevereiro

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Me lembro de quando Lily tentou me ensinar a atirar.
   Ela é a única do esconderijo que tem uma arma, por ser a que sai com mais frequência. Não sei com quem ela aprendeu. Com o Carvoeiro ou a vovó, talvez.
   Era um pouco depois do almoço num dia de caçada que ela me puxou para um campo aberto e mostrou como se segura uma. O som que ela fazia era tão alto que eu quase o enxergava alcançar lugares distantes. Ninguém estaria por lá, ela me garantia. Foi aí que ela me fez segurar a arma. O material é frio, a ponta é pesada e os coices são fortes. A arma é mortal. Eu nunca soube onde as balas acertaram, mas foram para muito longe. Eu larguei a arma e Lily acertou um pássaro, o que me fez dar as costas e deixar o lugar. Nunca mais precisei tocar em uma arma até aquele dia, no esconderijo.
   Aquele dia foi há dois dias atrás. Dois dias. Parece uma vida inteira.
   Minha cabeça dói ali mesmo onde me acertaram com uma pedra. Não vejo nada. Não sei onde estão minhas mãos ou pés. Sinto o chão gelado. Sinto o silêncio entrando dolorosamente em meus tímpanos.
   Abro os olhos.
   Estou em uma pequena sala, revestida de pisos brancos e surrados. Um pouco de luz vazava do corredor visível na saída da sala, no lugar que deveria ter uma porta. A sala não contém mais nenhum elemento. Somente eu.
   Puxo ar para os pulmões subitamente. Tomo um susto quando acordo. Onde estou? Onde estou? Tateio o chão gelado, em busca de…algo. Estou sozinho. Estou sozinho. Onde?
   Pânico. Respiro desesperadamente, procurando por uma saída que não me leve ao corredor. A sala não tem janelas. Só um corredor horrível e escuro. E… E…
   Um homem. Um homem vindo em minha direção.
   Só vejo sua silhueta e a de sua blusa aberta, que balança, enquanto ele anda.
   Prego minhas costas na parede de pisos. Acho que estou chorando. Meus pés me empurram na direção oposta do homem enquanto meu ar escapa sem minha autorização. Ele vai me machucar, e eu vou morrer.
   Quando ele entra na sala, perco o movimento do corpo. Caio congelado no chão, apenas o encarando e respirando. Voltei a respirar devagar. Meus olhos não piscam. Eu ainda não vejo seu rosto. Ele me encara.
   - Ele acordou! - Meu corpo dá um tranco de susto. O garoto grita. É um garoto.
   Não me movo. Eu acordei. Queria estar dormindo, desmaiado, morto. Fora de consciência. Queria não estar aqui. Por favor, alguém me tire daqui.
   Minha mão esquerda alcança minhas pernas. Queria que Michael me protegesse.
   Quando penso em Michael, penso em Jolie. Quando me lembro dela, meu corpo se contorce para que eu possa enxergar o corredor atrás do garoto em busca de algum sinal dela. Nenhum. Só de mais duas figuras se aproximando. O lugar é úmido.
   Ao passo que minha visão se acostuma com o escuro, deixo as pessoas tomarem consistência em minha cabeça e suas aparências se tornarem claras. Tem um garoto negro na sala comigo, um homem branco e muito alto vindo pelo corredor e uma mulher branca e de cabelos claros com ele. A mulher que persegui na floresta. Todos eles têm aparências surradas.
   - O quê? - pergunta a garota.
   - Ele acordou - o garoto repete.
   Os três preenchem a sala agora. Estou com o olhar fixo na mulher. Não ouso nem respirar. Eles apenas olham para mim. Ao que parece, a situação não é tão assustadora quanto eu achei que seria.
   - Fica de olho nele. Ele é rápido - ela diz ao garoto. Ela fala de mim. Eu sou rápido.
   O homem fala e eu me lembro de que ele está ali.
   - Desculpa pela pancada.
   Ele está falando comigo. A pancada em minha cabeça. Levo as mãos até onde deveria ter um band-aid. Só sinto cascas de sangue seco.
   - Vou trazer alguma coisa pra ele - o homem continua.
   Não quero comer.
   Batalho para controlar a respiração enquanto os dois sussurram entre si. Não consigo ouvir nada além do som do ar que entra e sai de mim.
   Involuntariamente meu olhar viaja por pequenos pontos, detalhes mínimos do lugar onde estou. Tudo está escuro, mas vejo minúsculos resquícios de luz vazando pelas paredes e teto. Não acho que esteja escuro, mas o lugar está. A única janela que enxergo fica à esquerda, no corredor, e está cheia de pedaços de madeira pregados.
   Meus dedos agarram os joelhos. Fecho os olhos.
   Inspire. Expire. Não vão me machucar. Vou sair daqui logo.
   Pressiono a testa na parte de cima das mãos. Ninguém virá por mim. Eu mesmo preciso dar um jeito de escapar. Quando penso na possibilidade, meu estômago revira.
   Fecho ainda mais os olhos. Quero escapar desse inferno.
   Não sei quanto tempo se passa até que o homem volta com algo empacotado nas mãos e coloca perto dos meus pés. Estão todos em silêncio, esperando que eu coma. A mulher até pede para que eu o faça, mas não consigo tirar os braços que entornam minhas pernas.
   Eles revezam enquanto me vigiam. Sussurram. Me olham. Se vão. Eu não me movo.
   Quanto mais se passa o tempo, mais algo se aperta em mim. Meu estômago se contorce. Meu corpo se retesa. Isso quase não parece real.
   Já se passaram várias horas quando sinto uma pequena pontada na perna esquerda. Me assusto, mas o garoto parado na entrada não parece perceber. Olho no lugar perto do calcanhar, e aproximo o rosto para enxergar além do escuro. Uma linha fina se abriu em minha pele. Um corte raso.
   Eu não fiz esse corte em mim mesmo.
   Acho que minha respiração pesa. Meu estômago se enche. A sensação é de uma bexiga dentro de mim, que bem lentamente começa a se encher. Ela se enche dentro de mim.
   Quero vomitar.
   O menino parece distraído. O saco de nozes ainda está próximo de mim.
   Deixo a mão direita em minha barriga para tentar a controlar. Levo a mão esquerda até o pacote. Quando o pego, o menino olha para trás, assustado. Ele, porém, baixa a guarda quando vê que vou comer. Não quero comer.
   - Que bom que você vai comer. - Ele olha em direção ao corredor. - A loirinha lá ia me matar se você não comesse…
   Abro o pacote. Não sei como vou colocar isso para dentro, mas eu quero vomitar. Eu preciso vomitar. É uma distração.
   Minhas mãos tremem desesperadamente. Meus dedos quase não têm força.
   - Aqui, deixa eu te ajudar. - E vem em direção a mim. Congelo enquanto ele abre o pacote para mim. Não tiro os olhos do piso escuro. Ele usa um par de tênis vermelhos. Me entrega o pacote aberto.
   Pego duas pequenas nozes na mão. Quando as taco para dentro, a bexiga começa a inflar. Os pequenos pedaços passam com dificuldade por minha garganta, como se eu estivesse abrindo. Lágrimas ameaçam escorrer. Só mais um pouco.
   - Vocês têm dois olhos diferentes, né? - ele me pergunta. Ele fala muito. Por quê?
   Algo na ideia me incomoda. Ele deveria soar ameaçador. Por que ele está me tratando bem?
   Quais são suas intenções?
   Cravo as unhas da mão direita na barriga enquanto ele fala. Algo queima em minhas entranhas. Algo está estufando. Meu olho está marejado quando levo a mão da barriga para a garganta. Aperto. Forço aquilo tudo a subir, aquilo tudo a sair.
   Engasgo. Meu corpo se contorce até que eu me curvo e, ali, despejo tudo. Vomito de forma barulhenta, cortando o falatório. Jogo tudo para fora. Tudo o que consigo.
   Quando termino, o garoto está segurando minhas costas. Lágrimas escorrem. Minha garganta faz um som esquisito. Meu estômago queima. A bexiga fica cada vez maior.
   Ela ainda vai estourar. Não agora, mas vai, e logo.
   Preciso sair daqui.
   - Meu Deus, cara, você tá bem?
   A respiração trava no meio do caminho, pedindo para que eu respire com mais força. Limpo os lábios com a camisa, tirando a nojeira. Me afasto dali e me encosto na parede, tentando recuperar as energias. Eu encaro o garoto.
   - Me deixa ir.
   Ele me encara de volta. Esse é um momento muito confuso. Não vejo maldade em seu olhar.
   - Eu… eu não posso. Desculpa… - Ele pisca, confuso. Ele não quer meu mal. Eu sinto isso.
   É quando sinto outra pontada, dessa vez no antebraço direito. Um outro corte nascendo. A bexiga começa a se encher mais rápido.
   Olho para a esquerda. Para a única janela que posso ver daqui. Lá fora, sinto o vento ficar mais forte, tentando entrar pelas frestas de madeira.
   Isso não é bom.
   - Por que você tá sendo tão legal comigo?
   Tudo parece ficar mais intenso aos poucos. As luzes que vazam ficam mais fortes. O som da minha respiração. A dor em meu estômago.
   A sensação está quase tomando conta de mim. Quase.
   - Eu não quero te fazer mal. Não é culpa sua. É só… - Ele pensa antes de falar. Ele encosta na parede da sala. A saída está livre. - A guerra começou por causa de vocês, então ela tem que acabar por vocês. Mas não quero machucar ninguém. Nem você, nem sua irmã…
   Jolie. Ele não quer machucá-la.
   Ela está bem, em algum lugar daqui.
   Respiro fundo. Ela está bem.
   A bexiga está prestes a estourar.
   É quando ouço o barulho.
   Forte, alto, fazendo eco pelos corredores. Um tiro. Vindo de algum lugar abaixo de mim. O garoto está surpreso, olhando para a entrada. Eu também estou surpreso. Só não tanto assim.
   A sensação toma conta. Eu arranco pela porta.
   Meus pés correm livres, um de cada vez. Eles pisam forte no chão, levando meu corpo até a liberdade. O ar segue pesadamente para dentro e para fora. As linhas do sol estão radiantes.
   O garoto grita em minhas costas. Os corredores refletem pequenos flashes do sol, todos revestidos de piso branco, tornando fácil eu me guiar por lá. Sempre que vejo algum corredor em uma direção diferente, eu entro.
   A mulher estava certa, eu sou rápido.
   Meu estômago se contorce. Quase.
   Respiro rápido enquanto procuro uma saída. Quero sair daqui. O garoto pode me alcançar. A mulher pode me achar. O homem pode me desmaiar de novo.
   Não vou permitir.
   Várias salas e corredores. É como um labirinto.
   - Jolie! - grito diversas vezes. Não obtenho resposta.
   Em algum momento, ouço outro tiro.
   Quando não ouço mais o som de passos atrás de mim, diminuo a velocidade, me dedicando mais a procurar pelas salas. Alguns corredores são mais escuros que outros. Meus pés podem ser mais barulhentos, mas estou tomando precauções.
   Sinto que quero vomitar de novo.
   Lá em baixo, ouço outro grito.
   É quando começo a correr outra vez.
   Por favor, esteja bem.
   O menino, de certa forma, me prometeu que não a machucaria. Mas eu também, de certa forma, prometi que não fugiria.
   Se eu não cumprir nosso trato, ele não vai.
   - Ali! - O homem grita, no final do corredor.
   Me viro para a direção do grito. Ele e o menino estão no final do corredor, me encarando pela porta da sala.
   Eu sou um alvo aqui. Por que ainda estou parado?
   Meus pés disparam.
   Quando saio pela porta e corro na direção oposta, encontro três coisas: a mulher, na outra ponta do corredor; o escuro e meu desespero.
   Não tenho para onde correr. Num último momento, meu estômago dá um último apertão e penso que vou vomitar de novo.
   Dessa vez, vomitar não vai me ajudar.
   Volto para a sala, sentindo cada centímetro de minha pele sensível e frágil. Meus pelos se arrepiando. É como se eles já estivessem aqui e já estivessem com as mãos em mim.
   Andando de costas e encarando a passagem, esbarro em algo e me assusto. É uma mesa e uma cadeira. Uma mesa pequena, uma das diversas cópias que preenchem a sala. São carteiras. Isso foi uma sala de aula.
   É quando corro para o canto e escalo uma delas. O faço para alcançar a janela minúscula no topo da parede à esquerda. Uso as mãos e aperto a alavanca que abre os vidros. Ela não vai abrir mais que isso. Talvez eu não consiga passar por ela. Uso os pés e me apoio na parede, passando primeiro a cabeça, que passa tranquilamente.
   Com o poder da imaginação, visualizo meu corpo ainda do lado de dentro. Ele está forçando a passagem dos braços, depois do peitoral e depois das pernas. Meu braço esquerdo está aqui comigo, enquanto eu encaro um corrimão em linha reta que forma um quadrado - cercando o andar de baixo que está escuro e infinito. É um pátio. Uma escada não está muito longe de mim.
   Posso escapar daqui.
   Não há nada embaixo da janela além do resto da parede e o chão. É onde vou cair, se eu conseguir sair. Tenho dificuldade de passar o tronco. Tenho dificuldade em respirar.
   Minhas pernas se rebatem e minha mão esquerda puxa incansavelmente a parede quando ouço os passos de dentro da sala.
   Num último puxão, esvazio o pulmão e dou um impulso.
   Não sei o que acontece. Meu corpo passa. Minha canela acerta a janela e, no segundo seguinte, o chão golpeia meu braço esquerdo.
   Bato a cabeça e o corpo. Grito. É a primeira vez que não consigo conter um urro de dor. Grito tudo o que posso, porque dói. O chão é duro e estava muito distante. Meu braço foi massacrado e minha cabeça provavelmente volta a sangrar.
   Meu estômago está prestes a explodir.
   Enquanto respiro ofegante em meio a gemidos, o escuro gira e treme. O corrimão é laranja. Alguns fios de cabelo fazem cócegas na testa.
   Não consigo respirar direito. Minha cabeça gira a fim de que meus olhos encontrem algum sinal de vida ou luz. Algum lugar para fugir.
   Não encontro. Estou cercado pela escuridão infinita.
   Estou morto.
   Procuro. Procuro. Procuro.
   Sussurro um pedido de socorro.
   Encontro a única parte do meu corpo que não parece despedaçada. Minhas pernas. Elas me levantam e o que ainda sobrou começa a correr. Sinto como se eu flutuasse por meio de frestas de luz e de pânico.
   Engulo em seco. Estou com sede.
   A cada passo, tudo aumenta: a dor, o desespero, a proximidade entre eu e meus inimigos e o meu fim. Minha morte. Hoje vou morrer.
   A cada passo, olho para trás para verificar o quão perto estou de morrer. Às vezes, penso ver sombras.
   Sigo o corrimão, que vai em linha reta. Quero chegar até a escada, descer e me livrar daqui. Mas onde está a escada?
   Então olho para trás uma última vez. Não vejo sombra alguma. Vejo somente raios de luz dançando no ar. É aí que tropeço.
   Minhas mãos vão ao ar, procurando por algo que eu possa segurar. Nada.
   Meu rosto acerta o corrimão. Um som agudo atinge meus tímpanos. Um zumbido profundo e infinito. Meu rosto explode em dor. Talvez eu tenha acertado o nariz.
   Quando minhas mãos agarram o corrimão, meu corpo não encontra o chão. Ele encontra a escada. E é quando começo a ser engolido pela escuridão do pátio, como no meu último sonho.
   Tudo começa a doer.
   Acerto cada degrau enquanto rolo escada abaixo. Diferentes partes do corpo socam violentamente os degraus. Sequer consigo gemer de dor outra vez. O ar que puxo não para mais em meus pulmões.
   Os degraus são infinitos.
   Bato a cabeça. Bato o cotovelo. Bato a panturrilha.
   Estou morto.
   Finalmente acerto um degrau maior com o antebraço direito - o chão. Paro de rolar.
   Acho que começo a chorar.
   Todo o meu corpo parece se juntar em uma explosão de dor. Não consigo mover os braços ou as pernas. Estou inerte no escuro, vendo apenas a escada e pontos dançantes em minha visão. Um som alto e constante toca em meus ouvidos. Minha cabeça parece cercada de espinhos.
   Estou morto.
   Quando tento respirar, meu corpo cerca minha barriga e eu começo a tossir. Cuspo um líquido gosmento e com gosto de ferrugem - meu sangue. Estou cuspindo sangue.
   Começo a chorar e a gemer. Não consigo me mover mais. Estou deitado no chão frio e completamente destruído. Eu desejo morrer. Eu quero que isso acabe. Eu preciso que isso acabe.
   Junto as últimas gotas de força que ainda tenho e viro meu corpo até eu ficar de bruços. Tudo está embaçado e escuro. Frio. Quando me apoio em meu braço direito, grito de dor. Me arrasto na esperança de achar uma saída. Mas para onde? Para onde?
   A bexiga se infla em mim. Meu estômago. Estou a pequenos passos de explodir.
   Ouço passos na escada. Ouço gritos.
   Respiro fortemente, buscando desesperadamente por ar. Começo a gemer e a me arrastar. Puxo mais ar. E mais. E mais.
   A bexiga vai estourar.
   Tudo dói.
   Começo a gemer mais alto. As paredes tremem. Começo a gritar.
   Sinto tudo dentro de mim se expandir. Tudo se parte em dois. Tudo desmorona.
   As janelas explodem. O ar começa a entrar, todo de uma vez. As paredes começam a ruir.
   Começo a flutuar. Minha consciência começa a flutuar. Vejo tudo do topo. Vejo uma bexiga me cercando, e quilômetros e mais quilômetros de vento, me cercando, vindo até mim, me rodeando, como um furacão. Um furacão que eu mesmo convoquei.
   Solto um último grito e olho para o lado. Tudo está claro agora. O pátio está iluminado. Eu derrubei todos os pedaços de madeira que fechavam as janelas.
   Vejo Michael, parado, segurando os braços de Jolie. Os dois me encaram.
   Um corte se faz debaixo de meu olho direito. Uma lágrima escorre e mancha o corte.
   Tudo irrompe em ventos e vai pelos ares, enquanto mergulho em uma escuridão profunda.

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