Atualmente, 6 de março
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O silêncio que vem a seguir quase me deixa surdo.
Meus ossos parecem mais leves, como papel. Papel esse da cor de minha pele, pálida. Pele essa sensível. Tudo parece fino e frágil.
Não sei onde estou. Só sei que estou voando.
Ouço vozes. Acho que morri.
Uma luz branca está no céu. É um teto gigante, infinito. Meu corpo é uma nuvem. Sinto-me flutuando e mexendo, como no céu. Vendo tudo abaixo de mim do tamanho de formigas. Um mundo inteiro de insetos.
Sou uma nuvem, ou uma estrela.
Algo me agarra. Algumas mãos. Elas me arrastam para um lugar que não vejo. Cada lugar que encosto parece rasgar camadas de pele.
Estou no completo breu, sendo levado por mãos invisíveis até o inferno.
Me deixo, ali, largado.Sinto pequenas cavidades por todo meu corpo. Sei que são agulhas sem precisar olhar. Minha cabeça dói. Sinto um misto de não conseguir me mover e de não querer o fazer. Por isso, espero a luz diminuir de brilho até meus olhos se acostumarem. Os abro.
- Não faça esforço. Você vai se recuperar logo. - Escuto uma voz que reconheço. É do Carvoeiro. Vejo somente formas borradas. Sua voz também parece distante. - Suas cordas vocais vão se afinar novamente. Seu corpo também vai se ajustar - ele diz e sei que está fazendo uma cara de condolência. Só não consigo olhar para ele. Eu encaro o teto. Tenho medo de tentar me mover novamente. Tudo dói. - Suas células, apesar de terem acabado com o seu corpo, se regeneram muito rápido. Acho que deve saber disso. Logo, logo, vai estar inteiro e recuperado. Logo vamos nos falar de novo. Vou aumentar sua dose de morfina… - Ele leva sua mão até minha dosadora e gira um mecanismo preso ao fio que está ligado aos meus braços. Quero dizer para ele não fazer isso, mas antes que ele retire a mão, meus braços ardem com um fogo relaxante. Então eu mergulho no escuro novamente.Vejo o rosto de Michael, num borrão. Torço para que ele fale comigo e me distraia da escuridão relaxante e mórbida que me encontro.
Dessa vez, a escuridão não tem fragmentos, e eu logo acordo.
Essa consciência é muito mais real.
A morfina não me deixa mais leve. Provavelmente acabou. Ainda me sinto calmo e relaxado. Quase sinto que poderia levantar pulando da cama - cama ou maca? É uma maca. A luz ainda está ali, mas percebo que está mais fraca. Acho que meus olhos estão mais acostumados.
Sinto uma pequena dor nas laterais do meu pescoço quando olho pro lado. Encaro a cortina branca que me cerca, padrão de qualquer área de descanso de um hospital.
A cada segundo encarando, sinto a morfina morrendo em meu corpo e sinto minhas energias voltando. Não sei como isso é possível, já que passei mais de horas sem comer… ou dias?
Resolvo olhar para a esquerda. Algum instinto dentro de mim sabia que Michael ia estar sentado ali, encarando as paredes - totalmente brancas. Devo ter visto isso nas minhas pausas de consciência. Ele me vê e se levanta em minha direção. Ele pisca, pesadamente. Uma vertigem?
Me lembro que em sua testa deveria existir um band-aid, da pancada na floresta. Onde está seu machucado?
Por que estou prestando atenção em coisas desse tipo?
Ele volta a si mesmo e me encara de novo. Abre um sorriso fechado. Imagino que esteja feliz em ver que estou bem. Estou? Esse pensamento me faz olhar para mim mesmo na cama.
Estou com um vestido leve e meio azulado - padrão de hospitais, também. Meus braços têm cicatrizes grandes e feias - são os cortes. Como se curaram tão rápido? Ou melhor, quanto tempo levaram para se curar? Quando falo, minha voz está rouca, mas perfeitamente bem.
- Por quanto tempo fiquei...morto?
- Morreu por uma semana. - Ele ainda pisca pesadamente.
Me surpreendo. Ele apoia seu braço nas abraçadeiras da maca.
- O quê?
- A morfina o deixa lento. Seu sistema imunológico funciona, mas devagar, porque é ele também quem te envia as dores. O soro praticamente retarda essas funções. E partes do seu corpo nem iam se recuperar sozinhas… - Ele olha, preocupado, para meus braços. Meus cortes. O que são eles, afinal? - Seus cortes tiveram de tomar ponto até cicatrizarem... - Seu olhar se perde no chão. Fico preocupado.
Por um momento, parece que ele falou rápido demais, porque demoro para processar. Não sei como sobrevivi a isso. Porque tive ajuda, provavelmente. Mas o que acontece quando eu não puder mais ser salvo?
Da próxima vez, meus poderes vão me salvar ou me matar?
- Niklaus, você quase morreu.
Sinto a morte saindo dos lábios de Michael.
- Eu sinto que morri, na verdade. Me lembro de ter morrido…
A sensação da morte. Tudo desligando, as luzes ficando mais fortes, minha respiração indo embora.
Eu nunca mais quero sentir isso de novo.
- Isso é muito ruim. - Uma voz sai de trás das cortinas. A mesma voz que me salvou. O Carvoeiro abre os lençóis e entra no pequeno espaço em que nos encontramos. Ele veste roupas normais. Para no pé da maca e me olha pelos pequenos óculos. - Suas células reagentes entram em fusão com as toxinas do seu sistema. Elas se agitam e fervem, gerando moléculas ligantes, que viajam até parte do seu cérebro. É de lá que vêm seus…poderes. - Ele parece cauteloso em escolher as palavras. - Porém, essas reações são perigosas. Suas ondas não são compatíveis com os tecidos de sua pele, o que gera os cortes no caminho para a cabeça - ele explica como se estivesse dando uma aula divertida de química. - Suas células de tecido começam a se dividir para se sustentarem e evitar que sua pele simplesmente se rasgue. - Ele quase engasga ao dar uma ênfase a essa palavra. - Consequentemente, seus tecidos enfraquecem. O que você fez aquele dia podia ter te matado.
Engulo em seco. Eu o encaro. Michael, aparentemente, já sabia disso, porque ele continua encarando o chão.
Minha mente se volta àquele dia. Me importo com o que aconteceu comigo, mas também me importo com eles.
- Eu machuquei alguém?
- Nik, olha… - Michael tenta.
- Michael. - Eu apenas o encaro. Seus lábios se apertam.
Eu machuquei alguém.
- Você derrubou um prédio.
E o silêncio se faz. Eu me lembro disso - de ter derrubado o lugar. Eu só me esqueci que tinha pessoas lá dentro. Inocentes. Um lugar cheio de cidadãos.
E Dakota. Ai, meu Deus. Dakota, e as duas mulheres.
Levo minhas mãos até meus olhos.
- Não sabemos quem estava lá dentro. E…
Ele desiste. Não existe o que dizer.
- Bom, vou deixar vocês conversando, mas, Niklaus, você precisa descansar - me pede o Carvoeiro. - Evite se levantar, mas use o banheiro o máximo possível. - Ele começa a retirar os fios e soros. Usa pedaços de algodão e toma muito cuidado. - Beba bastante água, também. Michael, você pode pegar água para ele, por favor?
E ele vai. Quando ele volta, estou segurando um pedaço de algodão no braço direito, mesmo que ele esteja grudado.
Ele põe um copo d’água na mesa ao meu lado. Tudo acontecendo rápido demais.
Ele se senta na maca, ao meu lado. As cortinas estão abertas. Está silencioso aqui.
Nós dois ficamos um ao lado do outro, sem dizer uma palavra. Até que eu pego o copo e bebo um gole. Michael respira fundo.
- Não foi culpa sua.
- Poderia ter sido algum de vocês.
- Você não pode controlar.
- Poderia ter sido um de vocês - digo, ríspido. Minha cabeça dói.
- Mas não foi.
- Dakota…
- Não sabemos se ele ainda estava… - Ele sabe, então, penso.
- Você pode, por favor, parar?
Irritado. Estou irritado.
Não existe meio de ele diminuir a gravidade da situação. Havia pessoas lá dentro. Não posso decidir se elas vivem ou não.
- Ele estava contando conosco - continuo. - Contando comigo. E eu derrubei um prédio em cima dele.
- Você está sendo injusto…
- Eles nos viam como aliados, Michael. Eles viam…
- Você não pode se culpar por isso.
Não ouço essa última parte.
- Eles estavam nos ajudando…
- Eles estavam ajudando a eles mesmos…
- E eu derrubei aquele prédio.
- Essa não é nossa briga.
- Eu matei eles!
- E você quase morreu - nós dois, falando alto.
E o silêncio perdura, eu o encarando, ele me encarando. Tremendo, ao meu lado, seu olhar alega que ele está frustrado e inconformado. Não consegue acreditar que essa seja minha preocupação, mas sei que é porque sua única preocupação é comigo. Mas isso é injusto. Estou preocupado comigo, mas estou vivo. Aquelas pessoas, não.
- Nik, você quase morreu. Eles estavam tentando te matar. Você acha que isso é justo? Com quem isso poderia ser justo?
Não sei o que responder. Espero ele falar de novo.
- Jolie me contou que encontraram pessoas lá dentro. Esse… Dakota. É isso que está afetando sua cabeça? Eles sabiam que podiam morrer lá dentro. - Ele está nervoso. Gesticula, desvia os olhares, respira pesado. E não para de falar mais. - Eles estavam batalhando, também. Eles também têm família. E nós também temos. É por ela que batalhamos. É pra encontrar Lily. É pra manter Jolie a salvo. É pra manter você a salvo. E quando eu te vi no chão, daquele jeito… - Sua voz ameaça um choro. - Eu não consegui, tá bom? Foram eles, Jolie, Philip…
Ele para. Eu falo tão baixo que revelo o medo que sinto da verdade dele, no momento.
- Eles o quê?
- Eles que te tiraram dali. Eu congelei, porque, pra mim, você tinha morrido. Tinha morrido pra salvar Annie, irmã de Philip, que agora também é família.
Eu tinha me esquecido dela.
Ele se move e me encara no fundo dos olhos.
- Nik, eu achei que você tivesse morrido. Eu sinto muito por isso, pelo o que aconteceu, pelo prédio, pelas pessoas. Mas aquelas pessoas lá fora… - E ergue a mão direita, apontando para fora do recinto. - Não podemos salvá-las, você entende?
Não respondo. Ele fica parado, ali, com a mão levantada, respirando rápido, implorando compreensão.
Depois de alguns segundos, ele se acalma. Olha para baixo. Se remexe. E ficamos ali.
Bebo mais um pouco de água, processando ainda o que ele disse. Ele não está errado. O que eu fiz foi sobreviver.
Tento recapitular o que aconteceu. Me lembro da raiva que senti. A vontade que tinha de salvar Annie. Saber que eles tentavam me matar.
Eu sei que não foi culpa minha. Ainda assim, o que fiz não foi certo. Certamente, matei pessoas. Mas como o sangue delas pode estar em minhas mãos?
Cerro os olhos, com força. Não consigo entender o que aconteceu. É tão confuso… Resolvo listar as coisas que aconteceram: eu estava tentando sobreviver; eu quis salvar Annie; eu quis me salvar; tentaram me matar, várias vezes; derrubei umas das instalações militares.
Não sei até onde isso me leva, mas me acalma. Foi isso que aconteceu.
Me lembro de mais um detalhe: eu quase morri.
O que isso significa para Jolie? Para Philip? Para mim mesmo?
O que isso significa para Michael?
Levo minha mão até a sua.
- Posso te pedir uma coisa?
Ele me olha, precisamente.
- Pode.
Engulo em seco, pensando em meu hálito.
- Você pode me beijar?
Ele me encara.
- O quê?
Por um segundo, tenho medo de que ele não sinta nada por mim. Por um pequeno segundo.
É isso que quero.
- Por favor.
Ele ainda me encara. Então ele se aproxima, devagar, e faz o que eu lhe pedi.
A sensação é nova, e bonita. Eu gosto daquilo. Me acalma, como uma dose de morfina.
Tenho perfeita noção do silêncio que me envolta. Nada parece acontecer, a não ser o beijo.
Tudo ainda é uma novidade para mim. O que tem acontecido desde que deixei o esconderijo não se compara a nada que vivi ainda escondido. Michael nunca havia acontecido. Nem Jolie.
Então abro os olhos.
Num pequeno segundo, vejo a cabeça de Michael, seu olho esquerdo fechado. Então vejo através das cortinas, Jolie, parada, vendo. Ela acabou de ver nosso beijo.
Recuo, de cabeça baixa. Michael me encara, provavelmente.
- O que foi?
Não sei o que responder de início.
- Nada, só… Acho que é meu hálito. Desculpa.
Ele dá um pequeno sorriso.
- Eu notei.
Fico envergonhado.
- Me desculpa.
- Não tem problema.
Passa a mão em meu cabelo.
- Você devia descansar - ele diz. - Eu também vou, um pouco. Não durmo há dias…
- Tudo bem.
Ele ainda me olha, então se afasta.
A esse momento, Jolie já não está mais lá. Ele me deixa sozinho, com minha cabeça.
O que ela viu, ou pensou?
Me ajeito na cama. Estou incomodado. Minha cabeça está cansada e lenta. Não quero pensar sobre isso agora. Dou mais um gole na água e vou até o banheiro. Manter meu peso sobre meus pés é difícil. O chão é gelado. Tremeço.Acabo de confirmar a Michael o que sinto por ele. Se existia alguma dúvida depois de um beijo roubado, não há mais. Ele sabe.
O que é ruim, porque Jolie… Jolie também acha saber o que sinto por ela, ou achava, até me ver através das cortinas. Não sei o que tirar disso tudo.
O que vivi com Jolie até agora é o que sempre quis viver, nós dois, um ao lado do outro, se gostando. O que eu não esperava era Michael fazer o que fez, assim, de repente. Ele despertou algo que eu não sabia que vivia aqui dentro. É assustador, e, ao mesmo tempo, encantador. Me dá vontade de agarrar aquela grama uma outra vez.
Como isso é possível? Crescermos, assim, como irmãos, e, de repente, surgirem paixões, sentimentos novos? Será que isso sempre existiu?
Tudo parece assustador. Pensar em Jolie me vendo, assim, me entregando a outra pessoa, uma pessoa que ela também ama. É terrível.
As memórias vêm e vão: eu e Jolie na minha biblioteca, eu e Michael escalando árvores enormes, ela segurando minha mão encostada nas pedras, ele me segurando forte ao lado de casa.
É isso que é agora? Casa?
Não tenho casa. Não tenho lar.
Que saudade do esconderijo. Minha verdadeira casa. Lá, eu e Jolie correríamos pela floresta, como sempre fizemos. Depois, eu iria me deitar com Michael e escutaríamos suas músicas, e pensaríamos sobre as letras.
Então Lily faria o jantar. Sinto sua falta, muito.Já pensei em Michael de várias maneiras, mas amigo é a principal delas. Me ajuda sempre que pode, sempre que eu preciso. Conversa comigo, me faz imaginar milhares de coisas do lado de fora do esconderijo. Ele sempre me desperta.
Havia alguns dias desde que a vovó faleceu quando ele subiu, de repente, para a floresta. Ele nunca havia feito isso antes. Eu acabei indo atrás dele. O procurei atrás de lugares e mais lugares. Quando escutei as pancadas, olhei na direção delas e ali estava ele, socando uma árvore. Quando fui até o lugar, ele me pediu para ir embora. Por insistir, ele também tentou me machucar, e eu revidei. Duas crianças, ali, brigando e se ferindo. Então ele fugiu outra vez.
Naquele dia, eu o encontrei no topo de uma árvore, o único lugar seguro do lado de fora do esconderijo. O sol estava se pondo, a floresta estava em silêncio. Ficamos um ao lado do outro, aproveitando como as coisas estavam calmas. Era só o que fazíamos.
"Me pergunto se um dia vamos alcançar aquele lugar ali", ele disse, e apontou para o mais fundo do horizonte.
Permaneci em silêncio por outros poucos segundos antes de o perguntar. "Você acha que não?"
Ele pensou por um momento. "Acho que não… Mas acho que a gente merece, não é?"
"Acho que sim."
E, na época, eu realmente achava que sim.
"Me desculpa ter te machucado", ele diz.
Simplesmente balancei a cabeça. Estava tudo bem.
Eu nunca me esqueço desse dia. Me lembro do verde de seu olho, ainda mais forte com a luz do sol. O mesmo verde que vejo agora, dentro do carro.
Meu coração palpita forte. Estamos indo embora. Ao meu lado, está Annie, quieta. Parece um sonho. Conseguimos. O carro balança.
Olho pela janela. Montanhas, árvores e construções caídas correm por ela, e meu olhar os acompanha. É tudo muito diferente do que olhar para uma tela, um visor, uma imagem - é tudo real. Me lembro de sempre assistir filmes e ler livros e me imaginar em sintonia com a natureza. Tocá-la, senti-la. Saber que eu estou ali e faço parte do que é real. E não ver tudo gravado, ou pintado, ou registrado. Ver tudo criado, em sua própria beleza.
Talvez agora eu possa. A vida aqui fora é uma constante sobrevivência, pode ainda querer me machucar - machucar qualquer um dos que estão aqui dentro, mas somos nós mesmos que vamos nos proteger. Somos nossa própria segurança. Somos um esconderijo único.
Em algum momento do silêncio e dos pássaros voando, adormeço.

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Rural
Novela Juvenil"Então eu também me viro e deixo ela para trás. Deixo as lembranças. Deixo minha irmã, deixo meu marido, deixo toda a minha vida. Deixo tudo. Bem, quase tudo. Porque o que sobrou ainda estou prestes a perder. Meu filho." Depois de ter sua vida e fam...