Capítulo XIII: Medo e Intrusão

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CLIO SABIA DESDE PEQUENA QUE ELA ERA ESTRANHA. Não somente quando estava acordada. Seus piores pesadelos eram aqueles em que não enxergava nada, apenas sentia.

Ela sentia sombras e luzes, gritaria e ventania a arrastarem. Dedos pegajosos percorriam sua pele, entravam em suas narinas, invadiam sua garganta até que ela engasgasse com o gosto de suor amargo e oleoso. De algum lugar, Ismini se esgoelava, acusando-a de arrancar seu útero. Astro chorava por ter sangue na boca. Ao mesmo tempo, um estrondo alto soava repetidamente, parecido com o barulho que o Senhor Baldinho fazia ao ser atingido na cabeça. Porém, dessa vez, a híbrida tinha a impressão de que os golpes eram no crânio de Vênus, ressoando também no dela, ameaçando rachá-la como vidro.

Mas, para ser rachada, Clio primeiro precisava ser sólida, o que ela não era. Ela era volátil, orgulhosa, egoísta, covarde. E o que a argila faz quando não está sólida e toca o fogo?

Quanto sentiu o fogo tocá-la em meio ao pesadelo, Clio não queimou. Se desfez.

Porque não havia diferença entre um pesadelo sem imagens e a escuridão da realidade, demorou um pouco para que ela percebesse que tinha acordado. Quem poderia garantir que não era mais um pesadelo, se ela ainda sentia as gotas de barro escorrerem pelo rosto? Se ela ainda sentia dedos humanos tocando-a?

Entretanto, esses dedos eram diferentes. Delicados, mesmo que ásperos. O toque de uma fada seelie limpando as lágrimas e o suor que escorriam na sua face.

― Ei, ei ― a voz de Vênus interpelou. ― Eu estou aqui.

Os braços dela envolveram Clio. A sensação não era sufocante como a do pesadelo. O abraço de Vênus era quente, acolhedor, humano, algo que ela nunca tinha recebido e sempre precisara. Ismini nunca lhe confortara e Astro não possuía braços. Em choque, Clio percebeu que aquele era o primeiro abraço que ela recebia na vida. Pelo menos, o primeiro de que se lembrava.

A constatação não ajudou Clio a parar de chorar.

Parem, ela ordenou, em vão, para as lágrimas teimosas e fumegantes que insistiam em cair.

O coração de Clio martelou como um louco contra suas costelas por um bom tempo. Os raios de sol entraram pela janela, trazendo a manhã e as lembranças da híbrida consigo. Ela dormira ali com Vênus no quarto de hóspedes improvisado. A humana se recusara a dormir no sofá e deixá-la no chão, então as duas dormiram lado a lado em cima de um cobertor estirado no tapete. Clio se sentiu culpada. Tinha importunado Vênus, a tirado do sofá e a acordado com seu pesadelo idiota. Mas, de novo, ela era egoísta. Ela engoliu um soluço e se afundou no abraço de Vênus.

Mesmo com a certeza que já acordara, o pesadelo não parecia tê-la abandonado, assim como o medo que tinha sentido nele. Ele se agarrava a sua pele que nem sujeira. O sentimento era frequente nela. Ela tinha medo de decepcionar Ismini e de deixar que Astro se machucasse. De que as coisas saíssem do controle como no dia que fora a Vergel. De que ela saísse do controle.

― Vênus... eu não... eu não sei se vou conseguir ir para o torneio...

Na verdade, Clio queria pedir para Vênus que também não fosse. Elas poderiam ficar na torre onde ignorar o mundo era mais fácil. Onde ela não perderia o controle e a humana não correria o risco de ser golpeada na cabeça durante uma luta de espadas. Mas ela não o fez. Não só porque iria contra a função de guerreira da outra, mas também porque não ia adiantar. Vênus tinha passado uma vida inteira treinando para aquele dia. Ela não desistiria agora que estava tão perto.

― Tudo bem. ― A humana afagou os cabelos dela. ― Você não tem que ir. Não nesse estado.

Elas ficaram abraçadas até que o sol saísse de detrás da colina e o céu clareasse de vez. Então Vênus teve que se levantar do cobertor. Clio ficou quieta, fingindo estar dormindo enquanto a humana se vestia silenciosamente e apanhava o equipamento que tinha separado na noite anterior. Clio a ouviu ir em direção à porta e parar. Então sentiu o olhar dela pesando tal qual um feitiço, tal qual um cobertor que a protegia do frio. Frio que a invadiu quando ela finalmente foi embora para o torneio.

VÊNUS SEM AMOR [concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora