Capítulo XXI: Gatos e Goblins

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QUANDO ASTRO ERA APENAS UM FILHOTE, cheio de energia e estabanado na mesma proporção, Clio gostava de levá-lo à Colina Nascente para gastar toda essa energia. Logo que as aulas de magia com Ismini acabavam, os dois subiam a colina e ficavam rolando na grama, espiando as fadas e brincando na relva.

Uma das brincadeiras que eles mesmos inventaram era chamada de Pega-Gigante. Basicamente, Clio tinha que correr enquanto Astro a perseguia, mas ele só poderia pegá-la se fosse na nuca como quem escala um gigante. Por outro lado, se Clio conseguisse derrubá-lo sem que ele tocasse a sua nuca, ela ganhava.

Era a brincadeira favorita dele, e a dela também. Eles poderiam passar horas correndo um do outro.

Mas correr de Astro era bem diferente do que correr de goblins.

A primeira diferença eram os rosnados. O rosnado de Astro filhote? Uma das coisas mais adoráveis que ela já tinha ouvido na vida. O rosnado de meia dúzia de goblins de meio metro com pele azul gosmenta e dentes afiados? Um barulho terrível que lembrava sons de engasgo e de navalhas tilintando. Mais do que isso, lembrava uma criança híbrida chorando diante de sua mãe bruxa impassível e de uma parede suja com sangue azul.

A cabeça de Clio pesou e as pernas dela fraquejaram por um momento. O barulho ficou mais próximo e mais alto.

Não pense nisso. Não pense nisso. Não pense nisso, sua consciência, que agora assumia a voz de Astro, repetiu várias e várias vezes. Só corra! Fuja! Sobreviva!

Ela retomou o ritmo de antes.

A segunda diferença era a circunstância. Por mais que ventasse na Colina Nascente, correr em Vésper era mil vezes mais conturbado. As pedras de quartzo branco ― por que feéricos amavam tanto quartzo? ― que calçavam as ruas eram lisas e escorregadias. Se preocupar em não derrapar não é o tipo de coisa que você quer quando está correndo de um bando de carniceiros.

Ao menos ela não precisava se preocupar em não esbarrar em ninguém. Por onde ela ia perseguida pelos goblins, a multidão se abria como um rio cortado por uma rocha. Ao contrário do que aconteceria em Vergel, ninguém berrava ou sequer encarava, apenas desviavam como se fosse um mero empecilho. Eram todos indiferentes. Ninguém se importava se ela podia morrer.

De repente, para mostrar que ela estava bem viva (por enquanto), o coração dela saltou para fora do peito. Seus sapatos tinham escorregado na pedra.

Por impulso e para ganhar tempo antes que os goblins a alcançassem, Clio jogou seu corpo para a direita antes de cair. Ela só não esperava atingir uma porta, ou que porta estivesse aberta.

Ainda no chão, Clio fechou a porta com o pé e depois se escorou nela. Do outro lado, os goblins rosnavam e esmurravam a madeira. Clio deu uma olhada ao redor, torcendo para que aquela fosse a casa de uma fada gentil que nem a da biblioteca. Ao invés disso, ela avistou um grupo de gnomos gargalhando alto em uma mesa, dois ogros disputando uma quebra de braço mediada por um terceiro em outra, um chibamba roncando perto de uma estante de bebidas e um punhado de fadas andróginas bebericando drinques coloridos.

Uma taverna feérica. Não era o melhor lugar do mundo para se estar, mas não era nem de longe o pior.

Mais uma vez, ninguém ali parecia se importar muito com ela ou com a porta atrás dela sendo forçada para fora das dobradiças. O único que parou para olhá-la foi o dono da taverna, um feérico com rosto felino e gravata-borboleta. Ele estava atrás do balcão, encarando-a como se perguntasse não o que ela fazia ali ou o que estava atrás dela, mas o que ela faria a seguir.

Ótima pergunta, Clio pensou.

Ela então viu a garrafa âmbar que ele segurava e imediatamente soube a resposta.

VÊNUS SEM AMOR [concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora