Capítulo VII: Feitiços e Quinquilharias

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AS LEMBRANÇAS DE CLIO DA ARCANO ENFEITIÇADO ERAM ESVANECIDAS PELO TEMPO. Ela mal sabia qual tinha sido a última vez que ela visitara a boutique de Ismini. No entanto, o cheiro de sálvia misturado com o de madeira e de coisas velhas lhe despertou memórias antigas e a disse que a loja estava exatamente a mesma desde a infância dela. Devia fazer parte do truque da bruxa para arrebatar humanos: fazer com que a boutique parecesse parada no tempo, imortal em suas paredes de pedra, uma representação da própria Ismini.

Arcano Enfeitiçado era uma das lojas da rua de pedrinhas brilhantes, todavia, distinta de todas as outras. Enquanto elas tinham estruturas modernas de ferro, carvalho e bronze, a fachada da Arcano era de ébano e o letreiro era uma placa com detalhes em cobre (e com um poleiro para Ketu). O vidro da vitrine era escurecido do lado de fora por um feitiço unilateral, mais na intenção de esconder do que mostrar o que acontecia lá dentro, uma arapuca para curiosos.

O interior era trabalhado em pedra, inclusive o chão de ― adivinhe só ― cerâmica. Prateleiras feitas de mais ébano com livros ornamentados, cartas de tarô, mini estátuas de deuses já esquecidos, óleos essenciais e incensos, água purificada das montanhas, pedras e pingentes de energia e móbiles com contas de vidro colorido. O bom e velho incenso de sálvia queimava em algum lugar. Tudo emanava um ar misterioso, uma sensação de que você estava tocando em algo poderoso e que isso lhe dava poder, mesmo que você não tivesse ideia do que fosse, o que normalmente era o caso. A maioria dos clientes eram interessados porém leigos no sobre-humano, ou saberiam que aquilo era a parte mais inofensiva da magia que existia no Vale Minguante.

A iluminação era feita por orbes de luz conjurados por Ismini. Clio tinha uma memória de humanos com os queixos para cima, parecendo pendurados, hipnotizados pelos orbes no teto. Algo bastante similar a como Vênus estava agora.

― Como elas ficam lá? ― ela perguntou.

― Magia ― respondeu Clio como se fosse óbvio, porque era. Tudo na vida de quem habitava o Vale Minguante girava ao redor dela. Era o seu eixo.

Vênus assentiu lentamente, do modo que ela fazia quando recebia alguma informação nova, e continuou admirando a boutique. Clio, que era familiarizada com as coisas ali, ficou entre fitar os próprios pés e Ismini.

A bruxa não dissera uma palavra desde que as colocara para dentro da boutique. Ao invés disso, organizava encomendas de poções e feitiços, calculava a renda da manhã e preparava o estabelecimento para a tarde. Já passava da uma hora e o comércio estava vazio em razão do horário de almoço

― Por que não me contou que atravessaria hoje? ― Ismini finalmente abriu a boca, utilizando-se da voz mansa.

Ela estava falando com Clio, é claro. Os lugares que Vênus ia, a não ser que fosse além da Clareira, não dizia respeito a ela.

A híbrida continuava a ter certeza que Ismini não brigaria com elas por terem saído da torre. Ainda assim, prestar contas para a mãe sempre deixava-a nervosa, mesmo que não tivesse feito nada de errado. A pior parte era controlar o nervosismo na frente dela, conter seu corpo para que nenhum tique transparecesse. Firmar-se sobre os dois pés (para não ficar transferido seu peso entre eles), endurecer os joelhos (para que não batessem os pés no assoalho), imobilizar as mãos ao lado do corpo (para que não tremessem) e encará-la nos olhos (para não demonstrar medo). Agir friamente como uma bruxa deveria.

― Eu não sabia que ia atravessar até hoje de manhã.

― E o que foi que aconteceu? ―Ismini cravou o olhar no dela. Clio sentiu uma vontade extrema de virar o rosto, porém resistiu. ― Eu conheço você, Clio. Prefere ficar cinco minutos sem respirar, com a cabeça mergulhada no Crescente, a vir em Vergel.

VÊNUS SEM AMOR [concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora