Capítulo V: Rachaduras e Sorvete

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ARGILA DEVERIA SER ALGO FÁCIL DE MANUSEAR. Ancestrais já faziam potes e panelas sem usar nada além de barro, chamas e seus dedos. Clio dispunha de tudo isso e mais um pouco.

Ela dispunha de livros. Mesmo que "A ANTIGA ARTE DO ARTESANATO" não fosse um livro muito útil ― "adicionar argila e água aos poucos até o material atingir uma consistência satisfatória". Mas o que diabos seria uma consistência satisfatória? ―, ainda era um pouco mais de conhecimento do que o primeiro ser que decidiu jogar barro no fogo tinha.

E ela também tinha magia e uma lareira na sala-de-estar.

Com a ajuda de um feitiço antitérmico nas mãos (um feitiço básico e fácil), Clio colocou as peças de argila recém moldadas no fogo. Se tudo desse certo, ela ainda teria que pintar o jogo de chá e suas suspeitas eram que suas habilidades como pintora eram ainda piores do que como ceramista, mas se o conjunto sobrevivesse à prova de fogo, ela seria capaz de fazer qualquer coisa.

Assim ela esperava.

As peças ficaram escuras contra o brilho das labaredas, que as lambiam como se estivessem dando-as a tentação de quebrar. Elas suportaram estoicamente. Até que começaram a derreter, gota por gota, se transformando em pequenas poças de lama.

Clio meteu as mãos no fogo para salvá-las, em vão. Ao invés de se desmancharem nas pedras da lareira, agora estavam se desmanchando na madeira do assoalho.

Ela ainda tinha magia.

Um movimento dos pulsos e uma ordem mental rígida. Seque, segue agora mesmo. Em um piscar de olhos, até as poças ficaram rijas numa solidez tensa. Clio liberou aos poucos o pulso de magia sobre as peças junto com o ar dos seus pulmões.

Dois segundos foram o suficientes para os pires racharem com um barulho estridente e infeliz. As xícaras foram mais resistentes e apenas trincaram.

Mas a resistência delas não valia de nada. Qual a diferença entre uma xícara trincada e uma rachada? Não importa: ambas são inúteis.

Então Clio não se importou muito em terminar o trabalho da magia dela e rachar de vez as xícaras. Ficou de pé com as duas em mãos e arremessou-as no chão com toda sua força, uma de cada vez. Elas espatifaram em milhões de pedacinhos cinzentos como se fossem feitas de vidro.

Era uma sensação boa quebrar algo quando nada estava dando certo. Inútil, porém boa.

Clio observou sua obra-prima despedaçada no chão. Três semanas atrás, ela estava lutando para moldar aquelas peças. Duas semanas atrás, ela estava lutando para limpar aquele mesmo chão. Em dez segundos, tudo se desfez.

Não, não. Ela quem destruiu tudo. A culpa era dela, não das xícaras.

Não ouse ter pena de si mesma, sua consciência usou a voz de Ismini para ralhar com ela. Você só teria um bom motivo para chorar caso o goblin tivesse comido sua mão.

― Ei, tudo bem por aqui?

Vênus apareceu na sua frente. Há quanto tempo ela estava ali? Clio torcia para que não muito. Já era vergonhoso quando Ismini e Astro a viam quebrar, Vênus vê-la daquele jeito seria o cúmulo. Ela usou toda a sua força de vontade para segurar as lágrimas e encarar a humana, esquecendo totalmente de respondê-la.

― Você está bem? ― Vênus estampava uma expressão de preocupação no rosto.

Clio estava péssima, mas ela nunca admitiria isso em voz alta. Não com todas as palavras.

Ela deu um suspiro sôfrego.

― Qual o nome daquela comida que você foi comer ontem? Sovéte?

VÊNUS SEM AMOR [concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora