Capítulo XXIX: Raposa e Pássaro

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DIZEM QUE A SENSAÇÃO DE ESTAR PRESTES A MORRER desperta a memória e a faz resgatar o rosto da pessoa amada. Quando Clio ficou diante da sua avó demoníaca, a memória dela não resgatou o rosto, mas as palavras de Vênus.

Hipoteticamente, se um dia você precisar usá-la..., Clio segurou a adaga com mais afinco. Não estique os braços e nem a coloque muito à frente. Podem te desarmar com uma simples pancada.

Clio tinha brincado com Vênus sobre a humana estar ensinando-a a matar alguém, mas agora que se encontrava frente à possibilidade, Clio não tinha certeza se estava tão disposta assim a colocar os ensinamentos de Vênus em prática. A decisão era óbvia se tivesse que escolher entre a sua vida e a da sua avó, mas, por precaução, ela deixou Nadira dar o primeiro golpe.

Os cabelos de Nadira passaram a flutuar ao redor dela, como as cobras de uma medusa. Uma das mechas voou em direção a Clio que nem um chicote. A híbrida então subiu no sofá e se deixou cair para trás dele. Nadira o tirou do caminho, espatifando-o contra a lareira, mas Clio não estava mais lá. 

― Então você quer brincar de gato e rato? ― Nadira indagou, a voz mais alta do que o estrondo que a pintura grotesca sobre a lareira fez ao cair em cima do que tinha restado do sofá. ― Muito bem. Vamos brincar.

Um por um, Nadira foi arremessando os móveis da sala de estar, pouco se importando se ficariam intactos ou não. Enquanto isso, Clio se aproveitava da raiva cega dela e das nuvens de poeiras levantadas pelos destroços para rolar no chão como tinha visto Vênus fazer tantas vezes em seus treinos e se esconder atrás da mobília restante. Aos poucos, ela ficava mais próxima da porta.

Quase lá, Clio se permitiu um pouco de alívio ao ver o brilho da maçaneta de latão através da névoa de pó e de serragem que agora tomava de conta do cômodo. Os músculos dela ardiam por causa do esforço de ter que rolar várias vezes enquanto segura uma adaga com uma das mãos, mas bastava só mais um pouquinho...

Então Clio ouviu vidro e porcelana estilhaçando no chão e, simples assim, a cristaleira que a protegia de Nadira foi pulverizada. Ela imediatamente saltou de seu esconderijo, se atirou contra a porta e tentou desesperadamente abrir a maçaneta com o antebraço esquerdo enquanto ainda empunhava a adaga na direção de Nadira com a mão direita.

― Nananinanão! ― A maçaneta se transformou na raposa de latão que emoldurava a aldrava da torre. ― Garotinhas mal criadas não podem fugir do inferno!

Foi quando Clio escutou o som terrível do teto acima dela despencando. Só deu tempo de rolar para longe antes que Nadira arremessasse o lustre contra a porta.

― Não adianta se esconder! ― a bruxa sibilou e depois tossiu. ― Eu sei aonde você está!

Era um blefe bem óbvio, porque nem Clio sabia aonde ela mesma estava. Não bastasse a poeira, agora fumaça e fuligem enchiam a sala. Nadira havia jogado um lustre aceso em um lugar basicamente feito de madeira.

Agora que a porta estava fora de questão, havia apenas uma saída. Para cima.

Clio rastejou e tateou cegamente o chão sujo até encontrar os escombros do sofá. Ela então escalou até ficar pé sobre a cornija da lareira destruída. Ela olhou para cima, sem conseguir enxergar nada. Era um arremesso no escuro. Era a sua única esperança.

Clio pegou impulso nos destroços e pulou com os braços para o alto como se estivesse suplicando ― e talvez realmente estivesse. Suas mãos rasparam em algo áspero, duro e desnivelado. Ela se segurou, primeiro com as pontas dos dedos, depois cravando a adaga no chão do andar de cima para conseguir subir pelo buraco do teto.

― Volte já aqui! ― Nadira se esgoelou atrás dela e a agarrou com o cabelo pelo tornozelo. Clio grunhiu e se içou para cima com uma força que ela nem sabia que tinha. Quando teve confiança de que estava bem apoiada no chão, ela arrancou a adaga e a usou para cortar a mecha de Nadira que a prendia.

VÊNUS SEM AMOR [concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora