Capítulo IV: Orgulho e Jasmim

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― HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ SABE FALAR?

― Desde que Ismini me trouxe pra casa. Ela queria que eu fizesse companhia para Clio enquanto tomo conta dela.

― Que nem um guardião?

― Eu sou um guardião. ― O tom na voz de Astro poderia se sair como ofendido, mas Clio sabia que ele estava mais do que satisfeito em falar sobre si.

Enquanto isso, Vênus parecia satisfeita em ouvi-lo falar. Durante a última semana, a primeira que passou no Vale, ela fez milhares de perguntas para Astro, e até arriscou algumas a Ismini, as quais a bruxa respondeu prontamente, o que era muito engraçado já que Clio lembrava muito bem da reprovação que recebeu na última vez que questionou algo à mãe.

No entanto, ela imaginava que isso fosse normal. Assim como humanos eram vaidosos com sua carne, e Astro era vaidoso com tudo, seres feéricos eram vaidosos com sua magia. Gostavam de explicar sobre o maior triunfo de suas vidas imortais, independente de quem estivesse perguntando. Independente que fosse Vênus Coração-de-Ferro.

Durante aqueles sete dias, Clio se questionou em pensamento se Ismini e Astro estavam cegos de vaidade ou se ela era a única que enxergava quão estranho era aquilo. Ela podia não conhecer pessoas, mas sabia bem pelos livros e histórias que Ismini trazia de Vergel que guerreiros eram tipicamente quietos e estoicos, doutrinados no laconismo, muito mais entregues à linguagem corporal do que à conversa. Coração-de-Ferro era uma guerreira metida a curiosa xereta e isso não cheirava bem.

Ao contrário da própria Vênus, que deixava na torre um rastro adocicado por onde passava.

Estava aí outra incoerência: Vênus cheirava bem.

Absurdamente bem.

Tão bem que deveria ser impossível para uma humana cheirar assim, e tão bem a ponto de Clio começar a se questionar se ela mesma cheirava bem. Não que ela suasse ― bruxas não suam―, mas de vez em quando pelos nasciam em lugares estranhos do seu corpo e eles sim poderiam feder.

Vênus Coração-de-Ferro era um absurdo.

Clio terminou seu café da manhã e recolheu a louça suja da mesa. Nem Vênus, nem Astro, mergulhados na conversa deles, notaram quando ela desceu para a cozinha. Que grande companhia era Astro.

Ela começou a lavar os pratos, agradecendo por ter algo para fazer com as mãos. Com o fim daquela semana, faziam dezessete dias que ela não tocava na argila que Ismini lhe trouzera. Clio decidiu culpar Vênus por isso também. Ela não conseguia se concentrar com a guerreira ali, com o seu perfume floral e suas incoerências. Vênus parecia fazer de tudo para lhe atordoar como havia feito à margem do Crescente; para lhe inspirar intimidação e admiração em igual proporção.

Admiração? Intimidação? Ah, não, não mesmo, Clio pensou. Ela uma bruxa, uma híbrida, alguém que andava entre dois mundos sem nunca pertencer a nenhum deles. Ela impressionava os outros, vestida ou nua. Vênus Coração-de-Ferro podia fazer o que fosse, porém sempre seria uma mera humana. Podia ser bonita, mas era humanamente bonita. Sem ângulos e feições afiadas e etéreas.

Clio sentiu algo macio e peludo deslizar entre suas pernas. Astro.

Ela decidiu ignorá-lo.

― Vênus perguntou se você quer que ela lave os pratos.

― Por que ela não vem perguntar pra mim?

Astro franziu o cenho.

― Ela está tentando te agradar, ué.

― Pois diga a ela que estou muito agradada, porta-voz.

― Qual o seu problema, Clio? ― Ela ficou calada. Aquilo tudo era um absurdo. Quem tinha problemas era ele e Ismini, não ela. ― Ó céus, você está com ciúmes.

VÊNUS SEM AMOR [concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora