Capítulo VIII: Desespero e Estilhaços

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NO CAMINHO DE VOLTA PARA CASA, o desespero atingiu Clio assim que as estrelas apareceram no céu. Foi como um raio acertando o mar e dissipando toda a calma que antes nele existia.

Ela poderia ter aproveitado o momento e mostrado a Vênus os vagalumes multicoloridos que iluminavam a Clareira à noite, no entanto o lembrete da escuridão fez seu passo acelerar.

― Clio?! ― Vênus a chamou quando ela disparou pela estrada. ― CLIO!

Vênus correu atrás dela. Mesmo com suas pernas longas e musculosas era difícil acompanhar a lepidez feérica da outra.

― CLIO, CÉUS ― a humana a chamou de novo. As batidas do coração de Clio ressoavam forte demais nos seus ouvidos para que pudesse ouvi-la. ― O que aconteceu?! Por que você está correndo?!

― As... tro... ― balbuciou sob a respiração ofegante.

Astro não tem mãos, era o que ela queria dizer. Ele não pode acender fósforos ou velas. Ele está na torre, no meio do escuro. Eu o deixei sozinho lá.

Mas ela não conseguia dizê-lo. Correr desesperada até a torre estava estava consumindo todas as energias dela. De qualquer jeito, Vênus a seguiu.

Aquilo nunca tinha acontecido antes. Desde a tarde em que Ismini chegara com um filhote nos braços e Clio o tomara nos seus, ela e Astro eram carne e unha, almas gêmeas. Um estava onde a outra estivesse e vice-versa. Ela não tinha certeza de quão boa a visão noturna dele era, mas, depois de tantos anos, o conhecia o bastante para achar que ele não saberia se virar sozinho em plena escuridão. Uma imagem de Astro se sentindo abandonado e com medo das sombras surgiu na mente dela.

Burra, burra, idiota, olha o que você fez, a voz da sua consciência a xingou.

Ela correu impossivelmente mais rápido.

No segundo em que as garotas saíram da estrada de terra vermelha e Clio pôde avistar a torre à sua frente, uma das janelas ficou iluminada. Aquilo poderia significar algo bom, que Ismini tinha chegado e Astro não estava mais só, se não tivesse sido acompanhado por um grito, feminino e cortante. Ketu grasnou de volta de algum lugar na noite.

Clio praticamente se jogou contra a porta de entrada ― aberta, para a sua aflição e sorte, ou ela não teria conseguido abri-la com os dedos trêmulos ― e subiu pelas escadas em espiral, três degraus de cada vez, até achar a fonte de luz. Ela nem sabia se Vênus ainda a seguia ou não.

A luz vinha da sala-de-estar. Aquela que tinha uma lareira.

Um dos orbes de luz clássicos de Ismini iluminava o cômodo, porém estremecido. Um reflexo da própria bruxa que olhava em choque um estilhaço enfiado no seu pé. Ainda de olhos arregalados, ela se inclinou e arrancou o caco de cerâmica com outro arquejo de dor. Seu pé ficou encharcado de sangue. Em poucos segundos, as vestes também. Uma poça escarlate se formou no assoalho.

― Clio... o que aconteceu aqui? ― a bruxa interpelou.

O tom manso dela era um logro, óbvio, fruto da linha tênue entre seus dois humores. Bastava uma palavra para que Ismini irrompesse em raiva e cólera. E essa palavra seria a próxima que Clio dissesse, não importava qual fosse. Por isso, ela tinha que escolhê-la com cuidado.

Mas não havia como pensar em cuidado ― ainda mais com coisas tão voláteis quanto palavras ―, nem mesmo para Clio. Não quando ela ouvia um choro familiar. Astro estava encolhido no canto da sala sala, lambendo as patas enquanto chorava baixinho. Ah, não, não, não. Clio correu até ele, passando por cima de mais fragmentos de argila, que racharam e quebraram com um som estridente sob as suas sandálias.

VÊNUS SEM AMOR [concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora