Capítulo XIV: Ferro e Magia

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NÃO FOI FÁCIL LEVAR VÊNUS ATÉ O ESCRITÓRIO DE ISMINI. Ela mancou escadaria acima com um braço ferido pendendo e o outro nos ombros de Clio, que a segurava pela cintura, o sangue da humana sujando a lateral da sua túnica. Astro as seguiu agitado, sem saber o que fazer para ajudar além de escoltá-las.

Clio a colocou com cuidado em cima de uma esteira. Um grunhido abafado saiu da sua garganta. Ela estava se forçando a não demonstrar nenhum tipo de dor. Clio teve vontade de xingá-la por isso, por mais que ela mesma não fosse exemplo para criticar o orgulho de ninguém.

Astro se pôs lealmente ao lado de Vênus enquanto Clio correu até a mesa de trabalho da sua mãe. Foco, ela respirou fundo, eu tenho que ter foco.

― Areia... Cinzas... Glândula de aranha... ― Clio murmurou na tentativa de lembrar os ingredientes. As mãos dela tremiam ao pegarem cada pote e o almofariz de pedra nas prateleiras. ― O estojo com os frascos. Você trouxe ele de volta? ― perguntou para Vênus.

― Sim. Eu levei a sacola com ele e o resto das minhas coisas para o meu quarto antes de ir te procurar.

― Astro, traga a sacola para cá ― Clio ordenou.

O cachorro se levantou e saiu correndo, contente por estar sendo útil.

― Onde está Ismini? Por que ela não te ajudou? ― a híbrida indagou quando Astro foi embora. Ela abriu os potes, colocou glândula, areia e cinzas na tigela, adicionou água de uma jarra na mesa e começou a bater com o pistilo. A mistura se tornou viscosa e acinzentada. Lembrava cimento.

― Ela me teletransportou até a torre e foi a Vergel buscar o jantar. ― Clio bateu o pistilo com força. Ela o quê?! ― Ela disse que você ia cuidar de mim.

Clio deu uma risada incrédula e sem humor. Para alguém que a achava irresponsável, Ismini colocava muita fé nela.

― Ela só te deixou sangrando na porta e foi embora?

― Meu estado não é tão ruim quanto parece. É o sangue que faz parecer pior ― Vênus justificou e gemeu ao se ajeitar na esteira.

― Estou vendo. ― Clio puxou sua adaga, prendeu a respiração e cortou a lateral da sua mão esquerda. Ela retomou o trabalho de misturar a poção com uma mão ao passo que adicionava punhados de sangue bruxo da outra. ― Você parece ótima.

Elas foram interrompidas por Astro que chegou arrastando a sacola de Vênus pelo assoalho. Clio a tomou da boca dele, tirou o estojo de lá e separou um frasco de antisséptico indicado por Vênus. Era um bom sinal a humana estar lúcida o bastante para ajudá-la. Nenhum desmaio hemorrágico à vista.

Clio pegou uma das toalhas de mão espalhadas pelo cômodo. Ela não sabia exatamente como a anatomia humana funcionava. Melhor dizendo, ela não fazia ideia se o corpo de Vênus responderia a magia do jeito que um corpo mágico respondia.  O plano era: (1) Limpar o sangue, (2) Aplicar antisséptico nos machucados por via das dúvidas, (3) Deixar a poção de Cura descansando durante o passo 2, (4) Aplicar Cura nos machucados e (5) Torcer para que o passo 4 desse certo.

Enquanto isso, Astro se contorcia na entrada do cômodo. O cheia de sangue devia estar deixando-o louco. Clio se sentiu orgulhosa por conseguir ignorá-lo. Era pungente, abundante, sufocante e... terroso, assim como tudo que é humano. Cheirava como a terra do Vale, cheia de ferro e outros minérios.

Existia um mito de que feéricos eram alérgicos a ferro. Nenhum deles fazia questão de desmenti-lo por se divertirem pensando nos humanos desesperados instalando grades de ferro em suas janelas, achando que assim impediriam fadas unseelie e bruxas malvadas de entrarem. Mas talvez houvesse um fundo de verdade nessa mentira. Feéricos desprezavam tudo que fosse típico dos humanos, inclusive o ferro que corria em seu sangue. Abundante como era, tinha um cheiro estranho. Era a coisa esquisita que Astro tinha farejado mais cedo.

VÊNUS SEM AMOR [concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora