Capítulo XIX: Segredo e Maldição

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― EU ESTOU APAIXONADA POR VÊNUS ― Clio confessou em voz alta pela primeira vez.

Foi tão súbito que Astro parou de mordiscar os biscoitos lunares dele para encará-la. Até ela foi pega de surpresa, tendo que apoiar a pilha de pratos limpos na mesa de jantar para não deixá-la cair. Era aquele momento da noite em que Vênus e Ismini já tinham ido dormir para acordarem cedo para o torneio e Clio ficava sozinha com Astro e a louça suja do dia. A torre ficava silenciosa e dava para ouvir os grilos cantando lá fora, animados com o auge do verão. Era o momento em que o mundo sossegava e a cabeça de Clio esfriava tanto quanto a água que ela usava para lavar a louça. Nesse tipo de momento, as confissões saiam deslizando pela língua de Clio. Por sorte apenas Astro estava lá para ouvi-las ― ele, os pratos e as paredes.

― Agora me diga a novidade. ― Astro retornou a atenção dele para os biscoitos.

Clio bufou de humilhação. Está bem, ela realmente tinha demorado a perceber. Já fazia um tempo que ela tinha se apaixonado, talvez no dia em que elas tomaram sorvete em Vergel, ou antes disso, quando a humana foi atrás dela no telhado da torre.

― Como você soube? ― ela indagou o cachorro.

― Te conhecendo como eu conheço, fica difícil não saber ― ele se gabou. ― Você olha pra ela como eu olho para os meus biscoitos, como se estivesse... ― Ele procurou pela expressão certa. ― Faminta.

Clio ergueu uma sobrancelha.

― Você está me acusando de querer devorá-la?

― Não é isso. Olha, eu nunca me apaixonei, mas eu imagino que seja como sentir fome: existe um grande buraco em você e você sonha em saciá-lo.

A híbrida pensou por um instante.

― É um pouco disso, sim.

Se Clio tivesse que ser honesta sobre o que ela sentia, seria algo similar à figura da carta de tarô que ela mostrou a Vênus. Uma tola apaixonada fingindo bravura diante de uma batalha que exigia armas mais poderosas do que as que ela dispunha.

― Agora que você sabe dos seus sentimentos pela humana, só falta fazer com que ela saiba deles também ― seu companheiro sugeriu.

― Se depender de mim, ela nunca vai saber. ― Clio escancarou as portas do armário e ergueu uma mão no ar, se concentrando na louça em cima da mesa. Pouco a pouco, a pilha se desfez em vários pratos e talheres flutuantes. 

― Mas por quê? Do jeito que vocês sãos próximas, eu não duvido nada que ela sinta algo por você também.

― Acredite em mim, ela não sente. Nem por mim, nem por ninguém.

Clio então contou toda a história para ele enquanto levitava a louça até o armário. Como a carreira malsucedida de um homem frustrado tinha culminado em Ismini descontando as mágoas dela em um bebê. Como o terror psicológico das árvores à volta do ninhário arrancou dela seu segredo mais profundo. E, por fim, como essa confusão inteira resultou na sua mais atual ― e talvez a mais grave ― crise existencial.

― É como se eu fosse amaldiçoada a sofrer por todos os pecados da minha mãe. Ela se apaixona por um humano, eu nasço uma aberração. Ela decide se esconder do mundo, eu passo a minha vida isolada em uma torre. Ela condena uma humana a nunca amar e eu me apaixono justamente por ela. ― Quando a última colher entrou no armário, deitando na gaveta junto a suas semelhantes, Clio o fechou e encarou Astro. ― Estou cada vez mais convencida de que a minha vida é uma série de eventos e coincidências infelizes. Eu devo ser uma piada para Kora.

― E qual é o seu plano? ― Astro perguntou.

O semblante de Clio se distorceu em confusão.

― Você não tem um plano para acabar com a benção e conquistar Vênus? ― ele esclareceu.

VÊNUS SEM AMOR [concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora