Capítulo XI: Golpe e Contragolpe

28 5 14
                                    

ISMINI DISSERA QUE A CLAREIRA ERA UM LUGAR SEGURO PARA UMA HUMANA. Isso ainda era discutível. Mas, sem dúvidas, Vênus Coração-de-Ferro não tinha nada que temer ali.

Porque, mais do que humana, ela era uma guerreira.

Clio lembrava de uma relojoaria que ficava na frente da Arcano Enfeitiçado quando ela era criança. Na vitrine, além de dezenas de relógios com seus tiques e seus taques, haviam autômatos. Bonecos humanos que andavam, dançavam e até escreviam sem ajuda de magia. Ismini explicara para ela que existiam mecanismos dentro dos bonecos, engrenagens, velas e cordas que os ajudavam a realizar movimentos calculados pelo relojoeiro para serem exatos.

Vênus se movia como eles. Braços, pernas e lâmina descrevendo arcos perfeitos. Os pés se deslocavam com vida própria em uma dança complexa. No momento que tocara no cabo da espada, Vênus não era mais a pessoa gentil que Clio conhecia. A transformação era brusca e resultava em uma máquina de carne, ossos e aço que deslizava no chão e cortava o ar. Uma máquina de guerra.

Era maravilhoso vê-la se mover.

Vênus deu alguns passos para trás, distanciou os pés e os firmou na grama, o esquerdo um pouco adiante. Ela inspirou fundo e curvou os braços acima do ombro direito. A espada ficou na altura dos seus olhos. A lâmina se alinhou com a mira deles. Ela os apertou contra a luz do sol. Um segundo de quietude se fez e a atmosfera ficou estática. Então Vênus soltou um grito e os pássaros de todo o vale bradaram junto com ela.

A guerreira avançou como um raio e atingiu a ponta da arma no Senhor Baldinho. Um buraco se formou no peito de couro dele. Vênus passou a dar sucessivas investidas. Ela o acertava na lateral, rolava na grama, o acertava na lateral e rolava de volta. Ela fez isso uma, duas, seis, dez vezes. Uma quantidade incrível feita em um ritmo frenético. Era impossível para qualquer um. Contudo, Vênus não era qualquer uma.

Se não fosse prazeroso assisti-la atacando-o incessantemente, como se ele fosse um inimigo real a ser derrotado, Clio sentiria pena do Senhor Baldinho. A híbrida tinha certeza de que ele não cometera pecados o suficiente em sua breve vida para merecer um castigo desses. Ainda assim, esse era o tipo de entretenimento que ela gostaria de ter enquanto esperava a eternidade passar: Vênus de armadura lutando como se estivesse num campo de batalha.

Será que ela já tinha lutado em um campo de batalha de verdade? Vênus tinha dezessete anos, então ela era um pouco nova para a guerra de fato. E, pelo que Clio sabia, o mundo humano não se envolvera em nenhum conflito nos últimos anos, por mais fácil que fosse do contrário acontecer. Para uma espécie mortal e sem magia, os humanos gostavam demais de batalhar e de correr riscos. E, ao mesmo tempo que flertavam com a morte, eles se agarravam à vida como uma rocha em meio à correnteza, como se ela não fosse areia escapando pelos seus dedos.

Clio observou Vênus se erguer, rodopiar e atingir o alvo com o gume da espada. Uma memória lhe surgiu de quando Ismini afirmara que guerreiros lutavam pela vida dos outros. Guerreiras como Vênus não se agarravam à própria vida, mas eram a rocha a qual os outros se agarravam. As primeiras a entrarem no campo de batalha e as últimas a saírem, ou carregando escudos manchados de sangue ou manchadas de sangue sendo carregadas em cima de escudos.

De repente, a visão de Vênus lutando não parecia tão prazerosa. Não que o coração de Clio fosse mole assim. Era só que, se Clio gostava de alguém, esse alguém morrer não lhe era muito agradável. Ela preferia que evitassem.

Eu gosto de Vênus? Sim, eu acho que sim. Ela é uma boa amiga, eu acho.

Vênus golpeou a cabeça do Senhor Baldinho com a parte chata da lâmina, forte o suficiente pra produzir um estrondo e amassar o rosto do miserável.

VÊNUS SEM AMOR [concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora