Benigna

VINTE E SETE

“Eis a voz dos teus atalaias! Eles erguem a voz, juntamente exultam; porque com seus próprios olhos verão, quando o Senhor fizer Sião voltar”. (Isaías 52.8)

Foram exatamente um ano. A guerra do Leste durou um ano. Mortes por todos os lados; homens mutilados; famílias inteiras perdidas e um derramar de sangue contínuo. A luta era pelo mar, pela terra e milhares de feridos de ambos os lados, mas na manhã de 25 de janeiro de 1880, ouvia-se o ruído de trompetes e gritos exultantes de soldados comemorando o fim daquele martírio. O prenúncio do convite de paz ecoava por toda a base pelos lábios dos homens que entoavam em um só coro o hino da nação.

“Estamos livres!”

“Os inimigos foram derrotados!”

“Deus salve o rei!”

Angelina encontrava-se fazendo curativos quando o ressoar de júbilo penetrou em seus ouvidos. Feride, movida por sua extensa curiosidade, deixou os afazeres de lado para descobrir realmente o que havia acontecido, porém não precisou esforçar-se tanto, pois Nora apareceu diante das duas com o rosto repleto de lágrimas, anunciando a certa vitória. As três experimentaram a mais profunda e intensa emoção de saber que aquele inferno chegara ao fim, elas não puderam conter o abraço em conjunto chorando copiosamente; e logo foram abordadas por soldados que invadiram a tenda comunicando em sonora voz a finalização daquela extensa batalha. O choro e os gritos a plenos pulmões foram dados por alguns dos acamados.

— Terminou! Sobrevivemos! — exclamou um soldado que havia perdido uma das pernas, por ter ficado perto de uma das granadas.

— Voltarei para minha esposa e filhas — outro declarou não conseguindo conter o choro. Ele tinha uma faixa na cabeça e uma tipoia no braço, contudo, logo se recuperaria por completo.

A Srta. Jones fitou-os emocionada. Ela percebera como sonhos e esperanças rapidamente voltaram a brilhar nos olhos dos que há meses não conseguiam nem somente dormir. Paz! E apenas o prenuncio dessa palavra era poderosa para restaurar planos arrasados e devolver sorrisos aos lábios dos abatidos. Por uns instantes, a jovem mulher percebeu que em breve aqueles muitos militares seriam levados para suas cidades, e ela certamente deveria retornar, contudo um aperto no peito a atingiu. Angelina amava seu vilarejo, mas constatou ali que não tinha o desejo de regressar para sua antiga vida, gostaria de continuar sendo útil aos outros e crescer na oportunidade de novos conhecimentos. Ela fechou os olhos e lágrimas caíram, pedindo a Deus que a direcionasse no caminho em que Ele desejasse.

*

Uma fogueira ao ar livre; um trio de violino, viola e trompete ecoavam o retumbante som da alegria na noite gelada. Vozes fortes e roucas expressavam músicas dançantes, arrastando muitos militares e donzelas voluntárias a dançarem em completo fervor, esquecendo-se até mesmo do frio, bebidas quentes eram servidas e palmas ritmadas também compunham a harmonia da canção. Angelina, Nora e Feride participavam do baile improvisado, estando as belas damas apenas sentadas aproveitando o calor do fogo e do chá quente.

Aquele panorama serviu para levá-la numa outra noite, quando na praia ouvira as mais excelentes palavras:

“Angelina Jones, aceita casar-se comigo?”

“Eu aceito!”

“Promete esperar minha volta?”

“Eu prometo.”

“Quando saí de casa para servir o exército minha mãe me deu essa medalha. Agora entrego a você. Como prova de que um dia estivemos aqui. — Ele olhou para o céu negro e estrelado. — Ele também esteve aqui.”

Ela não notou como seus olhos estavam vermelhos e inundados pelas lágrimas, relembrando novamente da medalha, que desde o dia em que recebeu, carregava consigo no pescoço, ela tocou no objeto de imenso valor sentimental e suas emoções a tomaram de um jeito que pareciam lhe afogar num fundo do poço de lamurio. Feride, ao seu lado, reparou atentamente aos seus modos e lhe abraçou com consolação, apesar de nada proferir, imaginava os motivos da cara amiga estar daquela forma. E, de repente, foram interpeladas pelo major Ed Clarke, desta vez, a senhorita Jones atinou o olhar do belo cavalheiro rústico para sua amiga, mas, diferente do seu pensamento: dele estar ali para convidar Feride há uma dança, ele requereu sua atenção.

— Srta. Jones, poderia acompanhar-me?

Ela limpou as lágrimas e respirou fundo, procurando naquela ação se recompor.
 
— Certamente, senhor!

Ed Clarke estendeu a mão para ajudá-la a se levantar, reverenciou as outras duas voluntárias e conduziu a senhorita Jones a antiga tenda do general Donald Foster. Ao entrar ali, Angelina sentiu outra pontada no peito de saudade. O velho homem fora, o que há muito tempo não tinha, uma figura paternal. Por que parecia que Deus sempre retirava aqueles a quem se afeiçoava? Desejava Ele que ela permanecesse sempre caminhando sozinha no mundo? Sempre aprendera que o sofrimento era o caminho de muitos cristãos, mas no momento ela desejava poder chegar “Às montanhas das delícias” e desfrutar de tempos de paz, tal qual como seu país desde então.

— Srta. Jones, devo lhe certificar que a sua pessoa fora muito apreciada pelo general. Há anos não o via tão humorado e com nova disposição. Antes mesmo de dormir, na noite de sua morte, eu o vi orando de verdade, devo atribuir essas mudanças de ações a sua vida — declarou o major com evidente reconhecimento das virtudes da mulher a sua frente.

— Caro major, não é necessário tais palavras. — Ela tinha um leve rubor tomando conta de seu rosto.

— Boas obras devem ser agradecidas, senhorita. E antes de falecer o general deixou algo. — Ele tirou de dentro do casaco um envelope fechado.

Angelina tomou-o nas mãos e retirou de dentro uma folha de papel com as deveras palavras descritas:

“Querida Angelina, meus dias foram muitíssimo acrescentados com sua presença. Certamente sua companhia em minha vida foi preparada por Providência Divina. Não saberia que ao lhe encontrar naquela tarde, estaria recebendo um presente novamente em minha vida. E ao saber de toda a sua trajetória como filha, amiga e noiva simplesmente não poderia partir mais certo de minha decisão. Então, com total confiança, deixo para você Nottinghan House, minha propriedade de campo e uma renda anual. Em absoluto meus recursos serão muito bem empregados por suas mãos bondosas e nada deixa-me mais feliz do que saber que minha moradia será habitada por uma mulher tão cheia de virtudes. Cara, Srta. Jones, seu caráter amoroso fora formado pelo fogo da aflição tornando-a numa mulher benigna, que faz o bem a todos quanto a rodeia. Seja as ternas bênçãos sempre com você.”

Com carinho, Donald.

A carta fora banhada pelas densas lágrimas da jovem mulher. Ela recebeu uma herança? Oh, céus! Sentia que seu coração estivesse sendo comprimido por tamanhas emoções. Ela escorou-se numa mesa próxima para segurar seu corpo ainda em pé depois do choque que levou com aquela notícia.

— O testamento será lido em três semanas, senhorita Jones. Eu estarei lá para assegurar todos os seus direitos — disse o militar.

— Sr. Clarke, como o general pode fazer isso? — Ela colocou a mão na testa fria, ainda incrédula com relação à herança.

— O general há tempos pensava o que faria com sua propriedade e renda; ele indagava-se para quem deixaria. Naturalmente quando a conheceu decretou sem reservas que lhe daria, a senhorita demonstrou ser digna de tal herança. — O homem proferiu com um sorriso modesto no canto dos lábios, o que demonstrava sua aprovação com a decisão do Sr. Foster.

Angelina fechou os olhos, sentindo as lágrimas escorrerem sobre sua face.

— E tenho algo mais. — Um brilho tumultuoso perpassou pelo olhar do major. — Fora encontrado na fronteira, perto dos escombros, algo que acredito ser de seu interesse. — Ele estendeu a mão fechada e abriu a palma diante dela, deixando-a ver claramente uma plaquinha de aço com o nome “Nathan Scott”.

A dor estalada no peito fora tão forte que num piscar de olhos tudo se escureceu.