Capítulo XIX - Surtos

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Eu não estou muito bem, me sinto tonta. A vovó quando veio aqui deu um celular antigo dela para o meu irmão e é por ele que vou conseguir falar com o Andrew. Também vou conseguir voltar pro meu universo alternativo onde eu posso mentir pois, lá é o lugar de mentir: o fake.

Justamente nesse momento eu me lembro deles? Por quê? Acho que dessa vez vou conseguir morrer de verdade. Contei para o Andrew tudo que estava acontecendo e enquanto ele não visualizava, liguei para um amigo. O nome dele era Igor, e ele era o único que podia me distrair nesses momentos finais. Agora além de tonta eu estava começando a sentir ânsia de vômito. Só que eu sabia que se eu botasse tudo pra fora, eu ia continuar viva, então decidi me deitar para não acontecer isso. E continuei conversando com o Igor na chamada normal. Eu estava dopada, minha memória sumindo cada vez mais, tudo que ele me perguntava eu não conseguia lembrar, aliás nem sei exatamente tudo que ele me perguntou. Estava tudo girando. Eu decidi procurar obsessivamente mais remédios para acelerar aquele processo, e fui bebendo todos de uma vez enquanto ainda falava com ele. Até que eu caí.

Eu caí no chão e fiquei deitada por alguns minutos olhando pro teto, sentindo minha morte próxima e chegando. Mas era apenas vômito. Peguei um balde que estava do meu lado e vomitei sem parar. consegui quase chegar na metade do balde só de vomito. Como eu odeio vomitar e odiava aquele gosto horrível na minha boca. Eu precisava limpar tudo antes dos meus pais chegarem, já que dessa vez, novamente eu não consegui morrer. Sinto tanta falta do Andrew e do Bernardo.

O Bernardo era meu "namorado" no fake. Ficamos em idas e vindas por pelo menos 6 meses. Não era um namoro real, era apenas um namoro entre fakes mas, que mexeu muito comigo. Ele parecia ser a única pessoa do mundo que entendia exatamente o que eu estava falando e passando. Mas ele sumiu. Assim como eu, o Bernardo também tinha depressão. Temo que o pior tenha acontecido com ele mas, até hoje ninguém tem notícias dele. Eu também saí do fake logo após isso pois percebia que não fazia bem pra mim, aquilo só revelava o meu pior e me fazia fantasiar mais e mais.

Depois de algum tempo, minha mãe devolveu meu celular. Eu já estava morta por dentro, na escola nova já não me importava mais em ter amigos, nem com nada. Eu simplesmente estava existindo. Comprei o uniforme mais largo de todos, eu não queria ser notada. Não queria sentar no centro nem andar por toda a escola durante o intervalo. Eu simplesmente queria ser invisível. Então o fake era a única coisa que eu tinha, por isso eu decidi voltar só um pouquinho pra lá. E esse pouquinho foi o suficiente para minha mãe descobrir tudo.

Eu estava jantando, enquanto deixei o celular carregando no sofá. Minha mãe se sentou no sofá e meu celular começou a tocar. Ela me perguntou quem era Cainã e nem me deixou responder, tirou meu celular da carga e novamente eu fico sem celular. Ela leu cada coisa do fake, cada coisa absurda que meus amigos falavam sobre sexo e abortos e etc. Praticamente os temas eram em torno disso, ou de depressão, no fundo todos eram carentes e estavam passando por um momento delicado, assim como eu. O Cainã tentou se comunicar comigo de diversas formas mas, como ele não sabia meu nome real, não conseguiu entrar em contato comigo e, quando recuperei meu celular ele já não estava mais no fake e nem os amigos dele. Fiquei me sentindo culpada novamente, cada vez eu magoava mais pessoas, e quando eu percebia isso, já estava tomando remédios de novo para tentar me matar novamente.

Na escola nova tinha uma menina que havia estudado comigo lá na primeira escola da Flórida, a que eu sofria bullying na época que perdi o papai. Ela estava totalmente diferente nessa escola mas ainda tínhamos algum contato, mesmo que distante. Aliás, nunca fomos tão próximas mesmo. Depois de algum tempo, ela tinha uma amiga que eu admirava um pouco, mas como eu queria ficar na minha, decidi apenas observar de longe. Ela também era observadora, um pouco quieta mas era muito inteligente. Ela sacava rapidamente quem era quem e como agir com cada pessoa. E ela foi se aproximando de mim. Com o tempo ela se tornou a minha pessoa favorita, riamos muito juntas mas, diferente de todas as minhas amigas anteriores, nós não conversávamos na aula. Apenas nos intervalos entre uma aula e outra, ou quando precisávamos ir na biblioteca ou no intervalo geral mesmo. Fazíamos todos os trabalhos juntas mas cada uma no seu quadrado.

Eu gostava daquela identidade por não sofrer, mas não era a minha real essência. Eu gosto de brincar com as pessoas, rir alto, falar alto, sem vergonha disso. E aqui, como eu expliquei no início eu estava apenas morta. Mas socializar com a minha pessoa favorita me deixava um pouquinho melhor. Aqui eu já não queria tanto me matar mas o me cortar era como um vício. Eu só não fazia mais com tanta frequência e nem com tanta força.

Aqui nessa escola tive alguns esquemas também mas não tive nenhuma relação sexual e nem quis. Tinha um menino em especial que eu tinha certa admiração. O nome dele era Daniel e eu percebia que ele gostava da minha única amiga. Novamente isso estava acontecendo comigo e eu não podia gostar dele. Eu perguntava se ela gostava dele e ela sempre me respondia que não, mad eu também não podia dar em cima dele, eu não queria levar um fora e ele nunca tinha dado nenhum sinal em sentir o mesmo por mim.

Ele gostava de fazer brincadeiras conosco. Em uma ocasião, ele estava brincando comigo e eu estava em um dia de oscilações de humor. Eu simplesmente não estava afim de brincar como normalmente estava, e como eu realmente estava quando começou a aula. Eu pedi pra ele parar diversas vezes e ele continuou. Eu nem sei exatamente o que ele falou, mas sei que na hora me subiu um ódio tão grande, que a única coisa que veio em minha mente foi fincar minha unha no pescoço dele. Quando começou a sangrar, fiquei desesperada pensando na merda que eu tinha feito. Na hora ele começou a gritar comigo, falando que estava doendo e que eu estava louca, então ele jogou uma garrafinha de água em mim, e meu reflexo acabou jogando o restante que tinha sobrado de volta nele, e molhando todo o chão e os cadernos de outra colega. Na hora a professora nos mandou para a coordenação. Uma coisa que me deixou muito pensativa e até grata ao Daniel, é que ele não me entregou. Ele não disso que eu quem tinha começado e tinha machucado ele, ele assumiu a culpa. Ele contou só a partir da parte que ele jogou água em mim e eu me defendi, e que ele quem estava me incomodando.

Eu fiquei um pouco surpresa com a reação dele, ninguém nunca tinha feito isso por mim. Mesmo assim, com razão, a coordenadora conversou um pouco comigo e me disse que se eu agia assim na escola anterior, nessa eu não podia agir, que eu precisava aprender a controlar meus impulsos. Como eu já estava fazendo acompanhamento psiquiátrico desde que havia acontecido o episódio da suspensão, eu apresentei a suspeita da psiquiatra e ela entendeu mas ressaltou a importância de seguir o tratamento e controlar meus impulsos.

Eu estava feliz nesse dia. Ela não tinha me esculachado, mas soube puxar a minha orelha da forma correta. Quando ao Daniel, eu agradeci ele por ele ter me ajudado e não entregado que eu havia machucado ele. Eu prometi que nunca mais faria isso e cumpri minha promessa. Ele também prometeu que ia parar de brincar assim que ele percebesse que as coisas estavam ficando intensas. Nos abraçamos e nunca mais falamos disso.

Distorção BorderlineOnde histórias criam vida. Descubra agora