✨Capítulo.11.✨

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-Lar, doce lar – disse papai na primeira vez em que entramos na casa da sua nova mulher.Ele abriu os braços, como quem diz: Não é muito simplezinha, né? Se a nossa casa em Chicago tinha o pé-direito baixo, a estrutura resistente e era pequena, oque eu considerava, com carinho, uma casa guerreira, esta era a rainha do bailede debutante: alta, resplandecente e vencedora de tudo sem fazer esforço. 

Sofás brancos. Paredes brancas. Estantes brancas. Já é bastante ruim que a Rachel banque o meu colégio, agora estou aterrorizada com a possibilidade de acrescentar à minha ficha a acusação de causadora de manchas. 

Não, não é exatamente um lar, doce lar. 

Parece estranho reclamar por estar morando em algo que parece saído de uma revista de decoração de luxo, mas é  que sinto falta da nossa casa, que papai vendeu aos Patel no primeiro dia em quea colocamos à venda. Agora a Aisha dorme no meu antigo quarto, de ondeforam arrancados os meus cartazes de filmes antigos e a montagem com capas de livros e fotos de Scar e eu fazendo caras idiotas. 

Aqui ocupo um dos muitos quartos de hóspedes, todos decorados de modo a impedir que a pessoa fique por muito tempo. 

Agora durmo num sofá-cama de estilo antigo – o tipo de coisa adequada para uma pin-up dos anos 1950 mostrar a cinta-liga, e não tanto para ,tipo, dormir. O banheiro da suíte parece caro demais para ser tocado, quanto mais para ser usado. E as paredes são decoradas com umas obras de arte abstrata que mais parecem pinturas de crianças. 

O meu único acréscimo ao quarto, além de Bessie, minha vaquinha de pelúcia de infância, é uma foto minúscula de minha mãe e eu, de quando eu tinha uns 8 ou 9 anos. Estou toda agarrada na coxa dela, como se fosse uma macaquinha, apesar de já ser velha demais para esse tipo de coisa. Ela está me olhando. 

Há amor e diversão nos olhos dela, adoração e medo nos meus. Ainda me lembro do momento em que afoto foi tirada. Eu estava com medo de uma babá nova, convencida por algum motivo de que, se a minha mãe saísse pela porta, nunca mais voltaria. 

– Você não adora isso aqui? – perguntou o meu pai sobre a casa, depois de ter carregado a minha vida em duas bolsas de lona pela escadaria ampla até o "meu quarto". 

Ele estava tão feliz e empolgado, como uma criança que faz algo bom e busca uma recompensa, que não consegui cortar o seu barato. Ele ficou completamente desamparado quando a minha mãe adoeceu. Num dia ela era saudável, capitã da nossa vida, a organizadora de tudo, e de repente não era mais. Diagnóstico: estágio quatro de câncer no ovário. 

Ficou fraca demais para conseguir sair do quarto, imagine para administrar as complexidades do dia a dia: refeições, sair de casa, manter o estoque de papel higiênico. 

Enfraquecido e exausto, o meu pai perdeu peso e cabelo, como se ele, não ela, que estivesse fazendo quimio e radiação. Como se ele fosse a imagem dela num espelho. Ou um gêmeo siamês. Um incapaz de funcionar sem o outro. 

Faz apenas dois anos (747 dias; eu conto), e eu notei que apenas recentemente ele começou a ganhar peso outra vez, a parecer mais sólido. De novo, finalmente,um homem, o pai, não o filho. Durante meses depois do acontecido, o meu pai ficou me fazendo perguntas que deixavam claro que ele não tinha ideia de como a nossa vida cotidiana funcionava: 

onde a gente guarda a pá de lixo? Qual é o nome do diretor da sua escola? Com que frequência você vai ao médico? Ele trabalhava em tempo integral, e quando não estava no serviço ficava ocupado negociando com as seguradoras, lidando com as montanhas de contas de médicos que continuavam chegando, tão cruéis, a posteriori. Em vez de incomodá-lo, eu pegava emprestado o estourado cartão de crédito. 

Agendava entregas regulares de papel-toalha e papel higiênico, mantinha uma lista de compras, comprava barrinhas de cereais e aveia instantânea por atacado. Como ainda não tinha carteira de motorista naquele primeiro ano, encomendava sutiãs pela internet. Absorventes internos também. Fazia à internet todas as perguntasque teria feito à minha mãe. 

Uma triste substituta virtual. Dávamos um jeito. Nós dois. E durante um tempo ficamos tão ocupados segurando as pontas que quase me esqueci de como as coisas eram antes. De como nós três combinávamos. Quando eu era pequena, subia na cama entre eles "para fazermos "sanduíche de Jessie". 

Éramos uma unidade feliz; três parecia um número bom, equilibrado. Cada um de nós tinha o seu papel definido. O meu pai trabalhava e fazia a gente rir. A minha mãe também trabalhava, mas em meio expediente, por isso era uma pessoa central, a pacificadora da família e aquela que nos mantinha unidos.

 A minha única tarefa era ser a filha deles, a sua menina boazinha, e aproveitar o fluxo constante de atenção. Faz 747 dias e ainda não aprendi a falar sobre nada disso. Ou melhor: consigo contar como eu comprava papel higiênico, como ficamos abalados, como eu fiquei abalada. Mas ainda não encontrei as palavras para falar sobre a minha mãe. A mãe de verdade. Para lembrar como ela era de um modo que não me faça ir ao fundo do poço de vez. Ainda não sei como. Às vezes parece que me esqueci totalmente de como se fala.

– Gosto, pai, aqui é realmente incrível – respondi, porque a casa nova era maravilhosa.

Se eu seria mantida presa por uma madrasta má, sem dúvida existiam lugares piores para morar do que as páginas de uma revista de decoração. Eu não reclamaria da absoluta falta de conforto 

– e nem estou falando de conforto com relação a mim, mas de forma geral – ou do fato de que eu me sentia como se tivesse me mudado para um museu cheio de estranhos. 

Pareceria mesquinho.E, de qualquer jeito, eu e o meu pai sabíamos que a questão não era essa. O problema era que mamãe não estava aqui. Nunca mais estaria em lugar nenhum. Quando eu pensava nisso por muito tempo, coisa que não fazia com frequência, percebia que não importava muito onde eu dormisse. 

Certos fatos costumam tornar todo o resto irrelevante. Antigamente tínhamos a força de três, e agora éramos algo totalmente diferente. Uma formação nova, impossível de ser definida. Um paralelogramo vesgo.

– Pode me chamar de Rachel – disse a nova mulher de papai quando aconheci, o que me deu vontade de rir. De que mais eu iria chamá-la? Mamãe? Sra. Scott? (O nome de solteira dela.Na verdade não era o nome de solteira, mas o sobrenome do marido anterior.)Ou mesmo, mais ridículo ainda, pelo novo sobrenome, o da minha mãe: Sra.Holmes? Na minha cabeça ela continua sendo a nova mulher do meu pai; é inútilme esforçar para me acostumar à ideia. A nova mulher do papai. A nova mulher do papai. A nova mulher do papai. Essas palavras simplesmente não combinam.

– Pode me chamar de Jessie – falei, porque não sabia o que dizer.

Só o fato de ela existir já era uma surpresa. Eu nem sequer havia percebido que o meu pai tinha começado a namorar. Ele viajava bastante – dizia que eram convenções farmacêuticas – e eu nem pensava em questioná-lo, apesar de ele nunca ter viajado a trabalho antes. Achei que estava se ocupando pelo mesmo motivo que eu ia à escola: para esquecer. Ficava empolgada em ter a casa só para mim naqueles fins de semana.

 (Quer saber se eu aproveitava e dava festas incríveis, onde todos tomavam cerveja em copos vermelhos descartáveis e deixavam montes de vômito no gramado? Não. Scarlett vinha dormir comigo. Fazíamos pipoca de micro-ondas e assistíamos a um monte de temporadas antigas dos nossos seriados prediletos.)

Até que um dia o meu pai chegou em casa e veio com um papo de que tinhase apaixonado, e notei que ele estava com uma aliança nova no dedo. Fria ebrilhante. De prata: uma medalha implacável. 

Parece que, de algum modo, em vez de ir para Orlando aprender mais sobre o medicamento Cialis, ele tinha ido para o Havaí com uma mulher que conheceu pela internet num grupo de apoio para pessoas que sofreram perdas. A princípio achei que ele estava brincando,mas as suas mãos tremiam e ele estava sorrindo um pouco, como faz quando fica nervoso. E aí ele fez um longo e terrível discurso sobre como sabia que seria difícil, uma nova cidade, mudar de colégio e coisa e tal – essa foi a parte que ele falou depressa, tão rápido que o obriguei a repetir para garantir que tinha escutado direito. Essa foi a parte em que ouvi pela primeira vez as palavras

 "Los Angeles". 

Três coisas sobre você ( imagina com Dylan K.)Onde histórias criam vida. Descubra agora