02 - Carne Humana e Chihuahuas

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Era um dia quente e nuvens cor de chumbo já começavam a ser avistadas no horizonte. A atmosfera porém era de animação. As duas pessoas selecionadas haviam começado a subir as escadarias do templo. Por uma semana, a voluntária e o escolhido se empanturraram de todos os prazeres possíveis, incluindo aqueles que normalmente eram proibidos.

A cerimônia havia começado e a multidão estava quieta, esperando o macabro desenrolar dos fatos. As origens desse ritual eram antigas, mas conhecidas por todos, pois o mesmo era a garantia de prosperidade para toda a sociedade pelo ano que se iniciava, sempre após o carnaval.

Os selecionados subiam em um palco e se ajoelhavam em púlpitos de pedra, com um bouquet de girassóis à mão. O mais velho sempre ia primeiro. "É simbólico", os espectadores comentam. Como o passar das estações, as cinzas da Fênix. Depois, seria a vez do mais jovem. Ambos se deitavam nas pedras sacrificiais.

M'amatzitla, a sacerdotisa chefe, se ajoelha no chão com suas vestes brancas e faz uma prece silenciosa para Mictlantecuhtli. Quase sempre havia pelo menos dois milhões de pessoas na praça, logo abaixo do templo, todas igualmente em silêncio e sabe-se lá quantas dezenas de milhões acompanhavam o espetáculo pela TV. Quando a sacerdotisa se erguia trazia na mão um punhal de obsidiana azul. Algumas câmeras se fixavam nisso, enquanto outras focavam, atentas, nas duas primeiras vítimas do Carnaval: um jovem e uma senhora.

Os sacrifícios, sempre seguindo essa lógica, faziam parte do ritual. Assim como os antigos astecas, estes antes dos sacrifícios embebedavam e drogavam suas vítimas com cogumelos alucinógenos, de modo que estas estavam despertas quando o horror acontecia. Vez após vez as câmeras se concentravam na mão da sacerdotisa, que se erguia devagar, mas se abaixava com certa celeridade, de modo que a punhalada fosse certeira, mas não tão rápida a ponto dos espectadores serem privados de ouvir um breve urro de agonia. O sangue espirrava nas vestes brancas e no piso de calcário; as câmeras focavam no espetáculo e nos filhos da vítima; naquele ano, uma senhora respeitável da elite local. Para o espetáculo seguinte, um jovem. O foco da câmera agora estava nos pais e na irmãzinha dele. Tudo terminou rápido e mal ela havia acabado de fazer os sacrifícios a chuva, bem como o carnaval, começaram. Seriam seis dias de festa com dois sacrifícios diários até a grande matança da quarta-feira de cinzas. Confiante na fartura da colheita, garantida pelo sacrifício, a multidão respira aliviada e dançava a noite inteira para comemorar.

Naquele ano e naquela hora os tambores sacrificiais já mudavam o ritmo dos toques, e as pessoas começaram a dançar. Em instantes a chuva que veio lavou o sangue da escadaria e levou a água tingida de hemoglobina humana para baixo, até os pés dos foliões, que já nem se lembravam do espetáculo que haviam acabado de assistir. Haveria colheita e portanto deveria também haver celebração. Festa, festa, festa. Orgíaca, dionisíaca, divina, maua, mexica, insana e plena! Festa, como se houvesse só alegria na Terra.

A chuva foi breve e o calor muito úmido produzido pelo sol da tarde já voltara; vendedores ambulantes, com os pés sujos de água contaminada com sangue, passeavam em meio à multidão, oferecendo o combo neoasteca do momento: sorvete de chocolate branco, com gomos de laranja sanguínea e licor azul. Quase ninguém percebia os funcionários encarregados de levar os corpos para o moedor de pedra, de onde seguiriam para alimentar os chihuahuas do Templo. Depois disso a multidão foi ver um jogo de tlachtli. 

O tlachtli era o jogo de bola mais popular tanto no Mēhxico e nos Estados Maias desde a antiguidade mesoamericana até ser proibido pelos conquistadores espanhóis. Mas desde a restauração e do seu ressurgimento cada vez mais ele se tornava popular e, com algumas adaptações nas regra do jogo, também no Império Inca, no Texas , nos Estados dos Aymarás e na República Chibcha. 

O jogo lembra tanto o futebol quanto o basquete: as duas equipes adversárias se enfrentavam em um campo em forma de "T" maiúsculo. A bola, de borracha, chegava a pesar 5 kg e só podia ser tocada e lançada com os joelhos, os cotovelos e os quadris. Os jogadores, em número de 5, esforçavam-se para fazê-la passar entre dois anéis de pedra fixados nas muralhas laterais, mais ou menos como nas cestas de basquete, e o jogo só terminava quando uma das equipes conseguisse passar a bola por um dos anéis, o que podia levar horas.

Todas as equipes de cada nível, aldeias/bairros, províncias, grandes cidades, Mēhxico e e Estados Maias, jogavam pelo menos duas vezes, sempre em dois campeonatos paralelos, que demoravam praticamente o ano inteiro: o Colibri, onde jogavam as equipes derrotadas, até que ganhassem um jogo e saíssem no campeonato ou perdessem e continuassem nele, e o Quetzalcóatl, que envolvia todas as equipes invictas até que uma delas perdesse e saísse do campeonato. Ao final do campeonato seriam conhecidas a equipe que havia vencido todos os jogos e a que havia perdido todos; cada uma teria um destino e uma sorte diferente.

Todas as comunidades nas quais a antiga religião fosse praticada participavam dos campeonatos. Aldeias enfrentavam aldeias, bairros enfrentavam bairros e depois de 12 rodadas, qualquer time poderia enfrentar qualquer time, os sorteios é que definiriam. As duas finais eram o ponto culminante da cerimônia que antecedia o solstício de inverno, em homenagem ao deus maia K'inich Ajaw. Importante dizer que, mesmo no tempo dos antigos esse era o deus homenageado, na medida em que os mais é que goram os fundadores da Mesoamérica e antecederam até mesmo os olmecas. Assim, mesmo no campeonato asteca [o mais importante] era esse o deus homenageado, pois como já se disse os maias eram os encarregados de organizar as datas, seguindo o ancestral calendário da grande roda.

A equipe que vencesse a final Quetzalcóatl, tinha os seus jogadores elevados ao status de nobreza, não mais pagariam impostos pessoais, e tanto eles quanto os seus irmãos e irmãs e filhos e filhas, teriam vagas asseguradas nas universidades; os técnicos ganhavam cargos no governo; as comunidades de onde eles vinham teriam um templo erguido em homenagem a eles e ganhavam o equivalente ao peso em prata dos jogadores que a estivessem representando e os melhores casamentos eram a eles reservados.

Já na final do campeonato Colibri, que encerrava as comemorações diurnas do solstício de inverno, a equipe que perdesse a derradeira vez tinha todos os seus jogadores, bem como os dois técnicos, sacrificados e incinerados na grande pira, para que o mundo se visse livre da derrota; mas os locais que eles representavam também ganhavam um templo em homenagem aos sacrificados e o peso em prata dos jogadores, embora fossem banidos dos jogos por 10 anos e nesse período, socialmente proscritos.

As duas finais eram o evento mais aguardado das televisões de Abya Yala. Jogadores da equipe que vencessem a final Colibri ganhavam status de amuletos de sorte e não raro, por conta disso, posições de prestígio. Já os que perdessem o campeonato Quetzalcóatl ganhavam fama de má sorte e frequentemente tinham que entrar no serviço religioso ou deixar seu país até o campeonato seguinte, por conta das consequências disso, pois ninguém queria tê-los por perto.

Dez anos antes,  um homem muito nobre, de nome José Tsipekua [que será, indiretamente, muito importante para a nossa história] se encontrara nessa situação, e havia sido banido da sua vila; quando voltou para as margens do lago onde morava, para buscar a esposa e os filhos e partir para o exílio de um ano à noite, um forte vendaval jogou os quatro ocupantes da pequena canoa nas águas geladas do lago: ele, sua esposa e o casal de filhos gêmeos. Apenas a mãe e um dos filhos conseguiram subir de volta. Todas as pessoas da vila, que antes o consideravam nobre e valoroso, aceitaram bem o castigo que, segundo eles, os deuses lhe haviam dado.

Tenochtitlán: os começosOnde histórias criam vida. Descubra agora