_ Aurora, Atlacoya e eu estávamos conversando...
_ Sobre?
_ Eu tenho saudades da minha irmã, sabe? Não seria a hora de ressuscitá-la?
_ Isso pode ser meio complicado, Tsipekua. O que é mesmo necessário para isso?
_ Pimeiro precisamos do sangue de Quetzalcóatl.
_ Então creio que temos um problema.
_ Eu andei lendo; o que nós podemos fazer é invocá-lo.
_ Realmente parece uma solução,mas como vamos fazer isso?
_ Atlacoya disse que devemos sacrificar uma criança. Você me ajuda?
_ A sacrificar uma criança?
_ Eu tenho saudades, Aurora. Nós éramos gêmeas, mas ela não nadava tão bem, sabe? Isso aconteceu há milhares de anos, e nesse dia eu também perdi meu pai. Minha mãe me contou que ela foi sequestrada e que o corpo dela estava naquela montanha que nós fomos. Aqueles ossos que trouxemos eram dela. Atlacoya me garantiu. Ela não mentiria, mentiria?
_ Claro que não Tsipekua, ela te disse a verdade.
_ Então você vai me ajudar? A sacrificar uma criança?
_ olha, o que basicamente você está me pedindo é que eu te ajude a sacrificar a irmã de outra pessoa para trazer a sua de volta à vida.
_ E o que você me diz agora são duas coisas; primeiro, que viver é uma coisa boa e portanto, a existência não pode ser cessar por decisão de outrem. A segunda é que, supondo que o mundo é habitado por bilhões de pessoas, todas valem a mesma coisa para você. Até que ponto isso é verdade?
_ Eu compreendi seus dois pontos. Estamos cansadas e com fome e essa é uma discussão muito importante. Que tal a gente ir para a cidade de Pátzcuaro e discutimos enquanto tomamos qualquer coisa e comemos?
_ Me parece uma boa ideia!
As duas pegaram o barco público que fazia a rota entre as duas localidades e em pouco tempo estavam na famosa La Bodega, um dos melhores restaurantes de Michoacán. Pediram chá, uma sopa de batatas e chile poblano, ovos motulenhos (Tsipekua), chilaquiles rojos (Aurora), uma salada completa e maíz morado assado na brasa e uma porção de abacates em cubo com limão chilli em pó e gergelim preto.Enquanto comiam e bebiam, com calma, recomeçaram a conversa.
_ Sabe, eu até compreendo o seu ponto segundo o qual a vida não é uma coisa que faça muito sentido. Veja que pouco mais de um ano atrás nós duas estávamos em Veracruz; no ano anterior primeiro quase fomos queimadas vivas e antes um pouco, nos congelávamos nos Andes. Volte um pouco atrás e eu tinha um marido e, não muito ante,s eu era uma recém-formada em uma cidadezinha da Inglaterra. Não há sentido para nada disso, nem sequer existem respostas, porque não há perguntas a serem feitas. Mas isso não quer dizer que os momentos que a gente passa sejam desprovidos de sentido. Veja quanta coisa aconteceu...
_ Eu gosto de ovos motulenhos. Então realmente, para algumas coisas existe sentido. Por qual razão mesmo você não gosta de ovos?
_ O cheiro me repugna.
_ Veja, eu gosto exatamente por isso, assim entre mole e duro, com toda essa salsa e abacates. Tudo isso me lembra o tempo antes do pesadelo. Eu fico feliz comendo ovos e abacate. Então o pouco de sentido que a vida tem, nós é que damos, não os deuses, os filmes do cinema ou os programas de rádio. Mas tudo não deixa de ser _ e me refiro à nossa existência_ absurdo. Se você não tivesse juntado dinheiro por três meses e ido para uma feira na Bretanha, provavelmente nem você nem eu estaríamos aqui. Se eu não tivesse armado a minha tenda na beira da estrada aquela vez que nos conhecemos tampouco as coisas seriam como são hoje, disse Tsipekua.
_ Talvez estivéssemos, quem pode nos garantir que a vida não é feita de pontos aos quais chegaríamos de qualquer maneira, independente do caminho que trilhamos? Nós vivemos coisas, conhecemos pessoas e lugares, acreditando que é pelos caminhos que percorremos. Mas talvez não. As pessoas veem o futuro como um lugar mais adiante, mas creio que ele seja uma queda e todos caímos, tudo cai. Esse é o sentido da vida: para baixo. Somos simplesmente despejados na existência. Será que é correto a gente enfiar os braços no meio da trajetória de outra pessoa e encurtar a queda dela, privando a existência, sabe-se lá quantas pessoas de coisas que a gente sequer pode imaginar?
_ Aurora, quando o universo joga as coisas, para baixo no tempo, não caem somente as pessoas, e quanto pontos. Toda uma teia de eventos, na forma das linhas do destino, cai junto. Algumas pessoas ficam presas na malha, outras não.
_ Perfeito, mas desejamos as coisas por outro ângulo: nós duas até podemos dizer que a nossa vida vale mais do que a dos outros porque é a que vivemos. Mas a gente pode de fato saber o que os deuses querem? Quer dizer, Quetzalcóatl não é um Deus que gosta de sacrifícios humanos, porque ele exigiria o de uma criança?
_ Você mesma deu a resposta. A gente não sabe e muito poucos de nós tem como saber, na verdade somente o que eles com quem os deuses conversam, o que é o caso de Atlacoya; logo, sabemos.
_ Realmente, nesse sentido e diante disso, eu vou te ajudar, Tsipekua. Eu mesmo pegarei a criança para você.
_ Quando, Aurora? Atlacoya disse que pode te ajudar.
_ Evidentemente depois da sobremesa. Que tal bananas e cubos de abacaxi flambados com tequila e cobertos com mel?
_ Boa ideia, quero o mesmo!
_ Quanto à ajuda de Atlacoya, eu agradeço muito. Que tal daqui há 5 dias, na Lua Nova, à noite quando as luzes já tiverem sido apagadas, logo após a última hora?
_ Simmm!
_ Então assim que chegamos em casa, eu vou fazer um chá para a gente tomar, dormir um pouco mais e descansar. Não quero que você se preocupe com isso, certo? Pode deixar que eu cuido de tudo.
_ Certo!
_ Vamos fazer uma prece nós três, e depois dormir. Depois da última hora, tudo se resolverá.
Aurora saiu bem cedo. Antes, recomendou que Tsipekua a encontrasse debaixo de uma sumaúma sagrada, que ficava a uma certa distância da Ilha, na margem norte do lago Pátzcuaro. Pouco depois da última hora, Aurora estava lá. Sentia-a mais pelo cheiro do que pela visão, pois estava tudo muito escuro.
_ Venha, estou aqui. A criança já está pronta para o sacrifício. Vamos fazer as preces necessárias.
Fizeram na escuridão todos os ritos que eram pedidos para tais ocasiões. Depois, as duas se ajoelharam e Aurora trouxe a criança.
_ Ela está muito quieta.
_ É que eu preparei bebidas para que ela adormecesse. Quetzalcóatl não gosta de sacrifícios humanos, então o mínimo que devemos fazer é garantir que ela não sofra. Segure-a pelos braços para mim, por favor.
Tsipekua segurou e ouviu o barulho de quando o peito foi perfurado, sentindo o cheiro enjoativo do sangue e logo depois, Aurora lhe entrega um coração.
_ O coração dela não está batendo...
_ É que o coração das crianças é puro, Tsipekua.
_ O que eu faço com ele?
_ Acenda uma fogueira e então incinere-o, junto com essas ervas sagradas. Enquanto você faz isso, eu sepulto o corpo.
Assim elas fizeram, e depois beberam em memória da alma da criança, queimando incenso de copal. Chegaram na casa delas por volta da primeira hora. Quetzalcóatl certamente estaria satisfeito.
_ Aurora, você se machucou!
_ Foi um corte à toa, não se preocupe. Que tal você tomar o seu chá para descansarmos?
_ Sim!
Acordaram quase na hora da ceia, quando o moço da feira foi entregar umas compras.
_ Aurora, o moço me cobrou um leitãozinho e uma boneca. Quando compramos isso?
_ É que eu fiz uma doação para um colégio do outro lado do lago. Ele trouxe mangas?
_ Trouxe sim, como está o seu ferimento?
_ Já fiz os curativos, em alguns dias vai sarar, disse, sorrindo com a ternura dos dias bons.
_ Os chás me fizeram muito bem. Mas sabe no que no que eu estava pensando?
_ Diga, carinho.
_ Em fazer uma faculdade. Afinal de contas, temos uma universidade aqui pertinho, em Pátzcuaro.
_ Olha, é uma ideia boa. E você pensa em fazer qual curso?
_ Então, depois que Rosalind Franklyn ter descoberto o ADN, surgiu um campo amplo de possibilidades. E como meu sonho é sentir algum dia o perfume das flores de plantas que foram extintas, por que quando chegar a minha vez eu gostaria jogo de mim pudesse ser recriado, penso em cursar Ciências Naturais. Meus cabelos pretos e lisos e meus olhos castanhos, são iguais ao de tanta gente, mas o perfume do meu corpo é único. O que eu te lembro?
_ Um sorriso que eu dei na infância, pouco depois de uma chuva. E também um odor diáfano de madeira e flor.
_ Exatamente como eu me sinto. Você é um amor!
_ É o que dizem, ela respondeu sorrindo. As matrículas começam mês que vem, você tem todos os papéis?
_ Tenho sim. Mas sei lá às vezes eu me acho um pouco velho para isso...
_ Por favor! Eu sei que você tem 3.800 anos, mas é só não contar para ninguém. Diga que tem a idade que você parece ter: 23, que tal?
_ É uma boa ideia; minha mãe sempre me disse para fazer isso.
_ Dona Dolores sabe das coisas!
_ Ah, então irei fazer! Você me acompanha?
_ Não, boba. Eu já sou formada em Farmácia, não se lembra?
_ É verdade, sempre me esqueço.
_ Quem vai administrar o boticário?
_ Eu pensei no seguinte: vou chamar a Maria, lá de Veracruz. Pois ela conhece bem o negócio e é confiável. Inclusive, penso em promover alguém da Chocloteria para também poder me dedicar a um projeto pessoal.
_ Qual projeto?
_ Um livro sobre a culinária dos povos do Mēhxico.
_ Uma ideia extraordinária, inclusive.
_ Só que para isso eu teria que viajar bastante, pois não quero apenas publicar as receitas, eu gostaria de contar as histórias por trás. Então, teria que viajar bastante, se isso não te incomodar.
_ Por mim tudo bem, te dou o maior apoio.
_ Muito obrigada, mas é que às vezes eu tenho medo de viajar sozinha, posso levar a Atlacoya, para ela me proteger e fazer companhia?
_ Excelente ideia, inclusive. Por onde você pensa em começar?
_ Por Oaxaca. Creio que mês que vem eu já gostaria de passar umas duas semanas lá.
_ Então, mês que vem começamos as duas!
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Tenochtitlán: os começos
Ficción históricaUma série de eventos permite que uma engenheira volte ao começo do século XIX, ensine e aplique tecnologia de alto nível e ajude vários povos a reescrever a História. O México se torna uma das potências mundiais, mas as antigas religiões do continen...