10 - Sem Coração

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Ao longo dos quatro dias restantes da primeira fase da lua, Aurora e as outras mulheres se sentavam sob a sombra das sumaúmas que havia no pátio do templo. As quatro árvores, como rapidamente ela ficara sabendo, representavam o Yaxche, que na mitologia maia possuía grande importância devido ao seu significado na história da criação daquele povo, na medida em que não só elas indicavam os quatro cantos do mundo como, aquilo que o sustentava, conectando os quatro mundos e permitindo que a alma dos guerreiros e das mulheres que morriam no parto alcançassem os céus. 

Nos primeiros dias todas as mulheres aprenderam mais coisas sobre as plantas mágicas, e os dons de cura e purificação que cada uma delas possuía. Para Aurora, que era estyrangeira, muitas delas eram novidade, mas eram conhecidas por quase todas as outras. Para compensar a própria ignorância, ela ficava no templo até o cair do dia, estudando os códices sagrados aos quais ela tinha acesso. 

Tanta dedicação não passou desapercebida e no último dia cerimonial ela conheceu duas jovens aprendizes de sacerdotisa: Yolotli e Coaxoch que lhe explicaram que aquelas árvores não eram símbolos astecas, mas maias, e que o ideal seria que fossem derrubadas, pois conspurcavam a antiga fé. Ela mesma, elas lhe disseram, com seu cabelo cor da Lua era uma outra conspurcação à pureza do Sol. Aurora percebeu que até podia fazer amizade, mas não com aquelas duas. Aliás, tão logo as duas a ofenderam, as colegas da Aurora a consolaram:
_ Não se preocupe com que essas insensatas disseram. O que elas falam inclusive vai contra o que acreditava a Mãe-fundadora; elas querem é o retorno de todas as antigas práticas, o que seria errado, porque somos todos uma grande tribo e não faz sentido nos dividirmos, nos separarmos. Por isso nem as aceitamos aqui nesse templo.

O pequeno incidente foi esquecido, e à tarde as lições recomeçaram. Quando ela voltou para a estalagem, tomou o banho de ervas, se purificou e resolveu ir para a pulqueria, trocar umas ideias com a anciã e praticar o fabrico do pulque. O processo de fabricação da bebida, ela descobriu, é bastante complexo. Tudo começava com o cultivo do agave pulquero ou maguey no altiplano mexicano _conformado pelos estados de Hidalgo, Tlaxcala, Puebla y Estado de México_ onde o solo rochoso e vulcânico, bem como o clima seco ou pelo menos semiárido e os dias de calor favorecem o desenvolvimento da planta.

A anciã explicou que o maguey leva 10 anos para crescer e ficar maduro e se possa cortar o pendão e recolher o aguamel em cuias médias. Depois de capada a planta de seu pedúnculo, ainda se esperavam 6 meses e só aí o água mel poderia ser recolhido por uns 5 meses, período durante o qual, duas vezes por dia, o tlachiquero usava uma navalha para abrir poros na planta e recolher a bebida adocicada, que então era levada ao tinacal, onde a mestre pulqueira colocava o líquido recolhido em tinas onde fermentam duas ou três fases lunares. Enfim preparada, a bebida fresca era bastante nutritiva e possuía entre 2 e 5% de álcool.

_ Originalmente, explicava a anciã, o pulque só podia ser consumido por anciãos e sacerdotes, e tinha um valor sagrado, sendo usado apenas pelos enfermos e em cerimônias religiosas. Mas há algumas gerações a bebida passou a ser vendida em pulquerias como a minha, onde toda a gente a pode consumir. O que nós fazemos aqui é o processo final, por que a bebida deve ser servida fresca e portanto, sua fabricação é sempre local, disse a anciã, orgulhosa do seu trabalho bem feito.

_ A aceitação da bebida é boa? Perguntou Aurora.

_ Nem sempre, filhinha. Existem algumas pessoas que condenam a bebida por embriagar os que delas exageram e outras que condenam o seu consumo porque deveria ser reservado apenas às cerimônias sagradas e aos anciãos, como no tempo dos antigos. Mas isso é bobagem, nosso tempo é agora! As pessoas que dizem que bebida deixa alguns loucos e desrespeita a antiga magia, são tolas, pois afinal de contas a magia renasceu exatamente porque a loucura deixou de existir. As pessoas tem que entender que ou alguns são loucos ou a magia está em tudo. Não se pode colocá-la em um pote, disse a anciã, empolgada.

Na verdade era nítido que as duas se davam bem e, por três fases da lua, após os ensinamentos no templo, as duas conversavam animadamente enquanto faziam pulque e o serviam aos clientes, trocando experiências entre si. A idosa tinha filhos, mas pelo jeito estavam sempre muito ocupados e Aurora nunca os vira. Assim, não foi sem muito choque quando, no primeiro dia da quarta fase da lua, tão logo ela havia chegado do templo, ficou sabendo pela proprietário da estalagem que a pulqueria havia sido incendiada e que quando conseguiram apagar o fogo encontraram a anciã sem o coração, amarrada no balcão. Isso foi um choque muito grande para ela, e trouxe consequências inesperadas.

No dia seguinte aos ensinamentos finais haveria a entrega da certificação para o exercício do fabrico e venda de poções feitas com plantas, e fosse porque Aurora estivesse muito feliz ou por quê de fato ele também se tivesse com bastante saudades, ele resolveu surpreendê-la na cerimônia. A lei do Mēhxico vedava veículos particulares, mas Dario na prática tinha um, por que se encaixava no critério de uso para o trabalho, e assim ele pôde ir de automóvel de Veracruz até o templo, nas cercanias de Tenochtitlán. Chegou cerca de meia hora antes da cerimônia, estacionou o carro fora do templo e entrou. O ambiente estava lotado de gente e alegria, como se fosse uma festa.

Aurora também estava contente pois finalmente ela conseguiria o certificado e poderia voltar para casa, inclusive estava com muita saudade de Dario e das pessoas que trabalhavam no boticário. Mas a verdade é que, seja por isso ou por quaisquer outras coisas, ela dormiu muito mal, e passou toda a noite tendo sonhos estranhos; foi a pior noite desde o assassinato da anciã, que a abalou muito. 

Se dormindo ela tinha pesadelos, quando desperta tinha a impressão que o espírito da idosa queria conversar com ela, e era atormentada por pensamentos estranhos, que não pareciam ser dela própria. E assim que raiou o dia, até quis muito se levantar, mas apenas se nenhum pássaro se sentasse no umbral da janela. Mas um colibri fez pior, e assim como algumas borboletas, entrou dentro do quarto. Aquilo certamente era um sinal, e ela só conseguiu se levantar na terceira hora, quando os animaizinhos saíram. 

Tomou banho correndo, vestiu-se com mais pressa ainda e chamou o transporte de aluguel, mas sabia que não conseguiria chegar a tempo. De fato, quando viu a imponente construção e olhou no relógio, percebeu que a cerimônia já devia ter começado há pelo menos meia hora. Desceu esbaforida e foi correndo para o templo, ainda mais quando percebeu perto dele o veículo de transporte do seu marido, com o logotipo dos dois. Apesar do atraso, ela não poderia estar mais feliz.

Acordou três dias depois, no Templo dos Enfermos de Tenochtitlán. Sentia dores por todo o corpo e sua boca estava seca. Quis gritar e também se levantar, mas a voz não saía e ela percebeu que estava enfaixada e coberta por ervas e emplastros. Vendo sua agitação, as auxiliares de cura foram na direção dela, lhe deram água e a contiveram.

_ Onde eu estou, o que houve? Cadê todo mundo, ela balbuciou.
Nenhuma das auxiliares falou nada até que a curandeira-chefe chegasse, pegasse na mão dela e com toda a ternura do mundo, dissesse:

_ Eu lamento imensamente, criança, Mictlantecuhtli levou todos eles.

_ Mas...

_ Alguém colocou uma bomba no púlpito e meia hora depois da cerimônia começar, ela explodiu. Todos morreram, você foi a única que sobreviveu.

_ Da..rio?

_ O estrangeiro da Pérsia também se foi, criança. Eu sinto muito.

Tenochtitlán: os começosOnde histórias criam vida. Descubra agora