_ Bom, disse a sacerdotisa chefe _ que fora dos dias designados para julgamento lecionava Filosofia no templo das mulheres _ creio que é hora de deixarmos Bergson e recorrermos a Bachelard. Mas por que Bachelard? Pois estamos tratando aqui da possibilidade de dar fluidez a um costume ancestral, e ele n'A Água e os Sonhos, usa-a como uma imagem infinitamente geradora, como uma forma de reunir a linguagem em torno de uma imagem e re-imaginar o mundo. É essa re-imaginação racional que encanta e seduz, mas também assusta e, o que nos interessa aqui, pois informa e instrui. É isso que o sonho faz e é isso que estamos aqui, tateando e tentando encontrar!
_ Verdade _ a sacerdotisa mais velha, que nos momentos em que não estava designada, era joalheira, continua _ se considerarmos o alcance do que desconhecemos, e quão mínimo, apesar de tudo o que a gente acha que sabe ou consegue compreender, é aquilo que estamos capazes de entender, quem pode dizer que Orfeu ou seus seguidores estavam errados, se não nos detalhes, na essência daquilo que pregavam? Quer dizer, você nos pede uma resposta, mas o que necessitamos aqui é de uma reflexão, e por isso confiam tão importante tarefa a mulheres.
Todas concordaram quanto a isso, depois de refletir um pouco [o processo era feito sem pressa]. E a sacerdotisa mais jovem, que era ceramista, continuou:
_ A gente compreende que essa interpretação tampouco é estranha à filosofia oriental. Senão vejamos. Provavelmente você conhece a história, mas houve um filósofo taoísta chamado Chuang Tzu, que depois de caminhar muito durante um dia ensolarado, deitou-se debaixo de uma amoreira e caiu em um sono profundo. Nisto, começou a sonhar que era uma borboleta, passeando pelos campos que acabara de percorrer, vendo as mesmas coisas que vira durante aquele dia. Quando acordou de repente, e disse para si mesmo:
"Estou diante do problema filosófico mais complicado da minha vida. Quem sou eu? Sou um homem que sonhou que era uma borboleta? Ou sou uma borboleta sonhando que transformou-se em um homem?"
_ "Sim, a questão filosófica é muito mais profunda do que pode parecer à uma primeira vista desatenta", disse a sacerdotisa que tinha uma tenda de alimentos no mercado comunitário do norte de Veracruz, "o que é o real muita das vezes é só a opção de realidade que a maioria escolhe aceitar".
_ Mas também acreditamos - ela continua- que a coisa toda vai muito além disso, de saber o que é realidade ou não, se existe como coisa real por dentro ou por fora, como já disse um poeta. Tudo isso importa e é isso que nos leva aos sonhos, como uma estrada de tijolos amarelos a nos conduzir ora até a magia, ora ao erro. Sabe, é lícito crer tanto que que existe Algo quanto que não, o que seria esse Algo certamente não sabemos, mas é lícito especular, compreende? Mais do que uma hermenêutica ou mesmo que uma estética das respostas, o problema parece ser de fato, ontológico, disse a sacerdotisa chefe.
_ Em profundidade _ ela continua _ nós e nosso povo tendemos a pensar mais ou menos como Bergson: posicionando todas as coisas em termos de tempo e espaço. Mas existem situações nas quais o tempo inexiste, ou assume um novo entendimento. A física só agora está quase a conseguir isso, mas o sonho sempre permitiu.
_ O sonho _ disse a mais velha das sacerdotisas, que era parteira _ permite que você reviva as coisas dentro de uma lógica muito própria, quase que tornando possível o eterno retorno de Nietzsche; é isso que assusta e é isso que seduz, desde os tempos de Orfeu. Nele paramos o tempo sem sofrer as consequências. Já pararam para pensar que se o tempo parasse no mundo que a maioria considera a real, a distância entre os corpos não mudaria e portanto seria impossível respirar? O próprio coração não bateria e nenhum pensamento poderia surgir? Disso eu derivo duas outras questões, primeiro a da natureza da imaginação, da qual falarei um pouco mais adiante; segundo, sobre a loucura. O Ocidente acha que ela existe, e a procura caracterizar e "tratar" com as mais variadas drogas, por que né? É uma cultura doente que precisa muito que todos saivam o nome do mal que padecem, para que quando sentirem que algo está muito errado tentem consertar em si mesmos, não no mundo-vidro, mundo-estilhaço. Inclusive chamam a isso de "ser normal".
_ Verdade, disse a sacerdotisa chefe, nesse sentido, para a maioria das pessoas existe a certeza que Chuang Tzu era um sábio chinês, porque borboletas não sabem escrever, e é a escrita que nos conta a história. Mas quem se lembra que sábios não conseguem voar? Assim, o segredo de Orfeu está nas asas de uma borboleta, dentro do sonho-mundo.
_ Verdade - a sacerdotisa mais anciã retoma a palavra - até que ponto a imaginação não é um tipo de sonho que se diz desperto? E por que sonhar não poderia ser uma forma multidimensional de inteligência, mais ampla e mais profunda do que a convencional, que nos liga e até nos conduz aos recantos insólitos do mundo e de nós mesmos, como se fosse uma ponte? Como é possível ter realmente certeza do que estamos vivendo, e chamar isso de razão, denominando loucura a qualquer dúvida, se há intervalos entre sono e despertar? Os que a sua civilização chama de loucos, talvez apenas não construam as fronteiras que vocês esperam ver e creem que existam.
_ Sim, pela Deusa, disse Aurora, visto dessa forma os que sonham ou não participam da realidade que maioria aceita, são uma espécie de anarquistas do entendimento, capazes de transitar nos mundos. Nessa capacidade talvez resida também os dons da profecia e por isso as culturas indígenas não só valorizavam, como buscavam esse estado intermediário da razão. Mas se me permitem, quero voltar ao assunto da palavra, do diálogo, esse presente do Feminino. Sabe, há um escritor, memorialista e pensador do povo fulani, da África Ocidental, que disse que "a ligação entre o ser humano a Palavra é mais forte [do que a escrita, do que as leis que se escrevem]. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra." Podemos, nesse sentido, nos calar, ou deixar que nos calem, da mesma forma que igualmente podemos gritar desesperadamente, para que o tempo pare em seu rastro, mas como alguém já disse alhures, "o tempo é inflexível a todos os apelos e corre [e] nos ossos descoloridos e restos desordenados de numerosas civilizações estão escritas as palavras lamentáveis: 'Tarde demais'." Assim, esse é o silêncio, a palavra é o caminho. Por isso que, no princípio, houve o Verbo e tanto em homenagem ao que é dito quanto em desagravo ao que foi silenciado em desfavor de nossos sentimentos mais profundos e vontades mais honestas , falamos a palavra, meu amor, é a um só tempo o Amor e o Sexo; a escrita é, no máximo, a masturbação da Ideia, mera siririca do entendimento.
_ É verdade, disse a sacerdotisa-mãe. Sendo assim, o que tens para nos dizer, diga.
_ É só isso, anciã.
_ Então, Aurora _ disse a sacerdotisa chefe_ este é o dom dos xamãs e é a nossa razão. Dito isso, indeferimos seu pedido, porque tanto as que sonhamos com o sono quanto as que visitamos o inconsciente, não vimos nenhum pássaro e três de nós sonhamos com um campo de girassóis, e isso certamente basta. Em três ciclos lunares você poderá recorrer ao Templo maior, então aproveite o tempo para se despir um pouco da sua razão e aproveite o resto do dia, deixe seus afazeres para amanhã, afinal você tem um homem e pelo menos para isso eles devem servir.
Todas riram, mas no fundo Aurora estava preocupada.
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Tenochtitlán: os começos
Fiction HistoriqueUma série de eventos permite que uma engenheira volte ao começo do século XIX, ensine e aplique tecnologia de alto nível e ajude vários povos a reescrever a História. O México se torna uma das potências mundiais, mas as antigas religiões do continen...