Sangue e frio

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Branco, branco, branco. Como se só houvesse branco na Terra. Mal duas luas haviam se passado depois dos incêndios terríveis na Califórnia e oeste de Nevada estava branco como o sal do Vale da Morte, e frio como consciência dos homens que abandonam seus filhos.
_ Eu vou ser honesta com você, disse Tsipekua. Eu preferia estar na minha terra, sabe cuidando das minhas coisas, do meu cachorro Vênus, do meu pinheiro e das minhas vasilhas. Eu venho fazendo isso há tantos séculos, e eu sei que no fim tudo dá certo e esta sensação é uma merda. Porque se no fim o resultado deu certo mesmo, a gente não aprendeu nada ou não avançou em coisa alguma pois se tantas coisas deram certo tantas vezes quadro de nada ter mudado? Então para quê? Não seria melhor a miséria de uma derrota? Porquê eu estou aqui, passando frio, como já passei em tantos lugares, para no fim acontecer sempre a mesma coisa? Qual a porra do sentido?!?
_ Uma mortal com problemas. Me diga, saco de vísceras, o que está te irritando é o frio? E a demora de Aurora em trazer o feixe de lenha? É ter vivido tanto tempo e não feito nada de relevante mesmo assim?
_ Você é um ser insuportável, Atlacoya, mas está correta.
_ Evidente que eu estou. A questão é, você quer mudar isso? Aqui e agora?
_ Diga, bruxa seca, o que você quer?
_ Um pouco do seu sangue e um pedaço da sua vida. Seu problema é que você já viveu demais, tormentos novos para sua alma, é disso que você precisa. Se você seguir pela entrada dessa Choupana será bem próximo do cimo do morro, pequenos depósito de obsidiana. Escolha a mais afiada e traga para mim.
Foi exatamente o quê Tsipekua fez. Encontrou uma obsidiana entre preta e verde, fiz uma lasca bem afiada e levou para Atlacoya.
Enquanto fazia um corte muito preciso no pulso de Tsipekua, a deusa da seca recolheu parte do sangue. Depois enfaixa o pulso da Pérechua e, ato contínuo, pega o quase litro de sangue que tirou dela, joga na neve e invoca
Itztlacoliuhqui. Enquanto a mistura de neve, geada e sangue vai se transformando no antigo deus de Vênus, agora do Frio, ela diz:
_ A partir de agora o tempo passará para você como passa para qualquer mortal. Em algumas décadas você estará morta.
_ Você fala como se fosse uma ameaça, mas para mim é uma promessa.
_ Certo, ajoelhe-se. Seja bem vindo,
Itztlacoliuhqui, meu caro.
_ Atlacoya! Mas você não estava banida?
_ Pois é, hora de mudar um pouco as coisas. Conto com você?
_ Porque não? Mas é claro que você sabe que como ela ainda está viva no momento em que ela morrer eu terei que voltar.
_ Não se preocupe, sangue a gente arruma. Gostou da escrava que eu te arrumei?
_ Ela é bonita. Venha aqui, você agora é minha. Deixe-me atá-la.
Surpresa, mas estranhamente resignada, Tsipekua acertou o seu destino e entregou-se ao deus, que a possuiu com volúpia e fome. Ao fim, colocou nela uma coleira diáfana e a deixou nua.
_Não se preocupe você é minha e o frio também e eu não deixarei vocês juntos um do outro.
Quando chegou e viu sua amiga nua, andando no frio com uma corrente no pescoço, Aurora só conseguiu balbuciar:
_Tsipekua?!?
_ Eu não me pertenço mais, Aurora.
_ Não é assim, você é dona de si. Toma, vista esse manto, cubra-se. Eu tenho alguns cogumelos comigo, vou fazer um chá quente e você vai melhorar. Não chore. Depois eu quero ver esse machucado, mas por hora, cuide-se. Eu estou aqui.
Aurora pega alguns cogumelos e ervas desidratadas que trazia consigo, joga uma água quase fervendo, para em seguida retirar do fogo. Quando a temperatura esfria o suficiente ela dá para sua amiga beber.
_ Lá fora tem neve, Aurora. Porque eu estou suando? Para onde vão as borboletas. É um sinal não é? Vai tudo dar errado, eu sei.
_ As monarcas já se foram, Tsipekua. Elas vão para o Norte, para o distante Norte.
_ Você viu Itztlacoliuhqui? Cadê Atlacoya?
_ Vi sim, amiga. Eu a vi. Eu acho que os dois saíram juntos. Por que os deuses são assim, eles tem as suas próprias regras, quando querem, fazem o que desejam.
Branco, branco. Até a noite tinha esse tom, iluminada pela lua cheia de um céu limpo no qual quase não se conseguia ver estrelas. Frio, branco. Tsipekua não tremia mais e parecia aquecida, dormindo de maneira tranquila e enrolada em um manto de algodão. Aurora dormiu mal, mas estava com o coração mais tranquilo pois a amiga finalmente parecia estar melhor.
_ Bom dia, fiz chá de folhas de bétula e de zimbro. Tome e coma umas tortilhas.
_ Bom dia, Tsipekua. Você está bem?
_ Você fala por causa desse machucado? Estou sim, está tudo bem. Coma! Temos que sair dessa montanha, está muito frio. Mas pelo menos parou de nevar. Itztlacoliuhqui já deve ter passado aqui com sua, limpando a neve para que a vida possa emergir novamente. A razão por trás disso eu te conheço. Porque tudo não fica simplesmente como está, não é mesmo?
_ Boa pergunta. Mas talvez a resposta por hora seja comer uma tortilha. Aqui não há abacates nem tomates, mas este chá está bom. Sabe, Tsipekua, poucas luas atrás tudo isso aqui estava se queimando e agora está coberto pela neve. Não existe sentido na primeira vez e continua não havendo. Então eu acredito que não se trata de sentido, mas de direção. Simplesmente devemos continuar seguindo porque esse é o nosso fado; os animais e as plantas fazem assim também, os deuses não. Mas eles não são capazes de ser felizes.
_ Não são?
_ Evidente que não, pois os momentos para eles não carregam nenhuma preciosidade e nada lhes dá medo. Sabe, creio que nem é que não dê para viver assim, mas realmente o fato é que de forma alguma isso seja viver; na verdade estão mortos, a diferença é que conseguem existir nesse estado. Essas tortilhas estão muito boas! Reparou que hoje não amanheceu tão frio?
_ Sim,bé verdade. Quando essa neve toda derreter teremos problemas.
_ As pessoas abaixo terão. Nesse chalé estamos tranquilas. Mas precisamos ir ao pueblo arrumar algumas sementes e comprar mais farinha de trigo e milho.
_ Viver é esquisito...
_ Não viver é mais. Por isso os deuses nos invejam. Agora venha aqui, vamos tratar desse machucado.
_ Aurora, obrigada. Quase todo mundo acha que eu estou errada em tudo...
_ Às vezes eu também acho. Só que isso não importa para mim, porque é muito mais importante como você se sente do que aquilo que eu penso.
Naquele instante a luz do amanhecer fundia a neve devagar, a alma dos galhos estava renascendo e o futuro já se preparava para trazer flores. Pela primeira vez em bastante tempo, Tsipekua sorriu por achar um besourinho engraçado. Absurdo, como sempre. Mas bonito como há muito não era.

Tenochtitlán: os começosOnde histórias criam vida. Descubra agora