05 - Sobre Negócios e Feitiços

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Antes de qualquer coisa ambos perceberam que era necessário aprender a nova língua. Ou melhor, as novas, pois quase toda a gente falava tanto nahua quanto castelhano, e muitos onde residiam falavam maia [três das línguas oficiais da terra que escolheram]. Por acordo entre ambos os dois aprenderiam castelhano juntos e Dario _ que já falava persa, pashto, curdo, baluche, inglês e francês _  e tinha mais facilidade para idiomas, aprenderia também o Maia e Aurora _ que apenas falava inglês e francês _ o Nahua. 

Enquanto isso, restava a questão das licenças para trabalhar com comida. A princípio a coisa toda pareceu meio feudal, mas depois fez sentido: a comida no Mēhxico era considerada sagrada e o relacionamento daqueles povos com ela era muito diferente do encontrado na Europa, ou mesmo na Pérsia. Mas felizmente para os dois, uma nova turma se iniciaria na lua seguinte. De toda formam Aurora havia resolvido abrir o boticário apenas quando tivesse todas as essências, mas decidiu estudar o quanto antes, pelo que no dia seguinte já havia se matriculado, ainda que as aulas fossem demorar algumas semanas para começar. Como Dário também trabalharia com comida, e portanto teria que fazer o curso, os dois entraram na mesma turma.

Tão logo as aulas começaram, xamãs, feiticeiras, anciãos reputados e professores universitários explicaram a  eles a origem dos alimentos e as lendas que davam caráter sagrado a cada alimento, a começar pelos mais importante deles, o milho, a pimenta e o cacau, mas também os feijões, abóboras, abacate,  pitaya, pitahaya, jicama, agave, muitos tipos de fungos, folhas, rizomas, raízes, sementes, nozes, frutos e baunilha. Uma miríade de perfumes, cores, formas e sabores que ambos sequer sonharam existir, de repente era apresentada a eles.

Durante o curso foram até as plantações, conheceram e conversaram com os camponeses e anciãos, entenderam as plantas e a terra. Ajudaram no plantio, nos cuidados e na colheita. Ouviram das anciãs as histórias sagradas. Depois de cinco luas inteiras, aprenderam sobre o cacau e o chocolate. Inclusive, no primeiro dia sagrado da última lua do curso, prepararam e tomaram a bebida e comeram o doce. No último dia da última lua do curso, todos os que participaram ajudaram a fazer um banquete, que foi servido aos jovens, às grávidas e aos idosos do ejido que os havia acolhido , em sinal de respeito, conhecimento e desejo de boa sorte. Eles mesmos não puderam comer nada o dia inteiro, para que compreendessem a função a importância da alimentação, e o caráter sagrado da mesma. Mas assim que o sol se pôs, lhes foi servido tortilhas, milho e água. 

Ao final do curso Dario foi o que mais se transformou espiritualmente e, ainda que não tenha decidido renunciar à sua crença e abraçar a antiga fé dos povos que o acolheram, incorporou muito do que aprendera e vivera; para Aurora o impacto foi menor, porque muita coisa ela já sabia, ou pelo menos desconfiava, bruxa que era. No fim, as tendas que abriram ficavam em locais diferentes: a de Dario no Mercado Central e a dela, no Mercado das Bruxas.

Ele resolveu fazer os pães da terra que o viu nascer e que aprendera em Paris e com sua avó , mas mesmo assim ele se matriculou na oficina dos padeiros, para aprender a fazer novas coisas e ter licença para vendê-las. Aurora, por razões semelhantes, se matriculou na Escola de Bruxas, para fazer o curso inicial obrigatório, que era exatamente sobre as artes de temperar corpo e  alma, perfumar o ambiente e manter o corpo purificado e são. No total, ela passou nove meses aprendendo tudo que fosse necessário para se iniciar no negócio, naquele que era o tempo padrão ritualístico para isso, findo o qual ela se viu habilitada não apenas para vender ervas, temperos e especiarias, como também para recomendá-las.

Quanto ao sonho de fazer chocolate, Aurora logo descobriu que era muito mais do que um trabalho, era um ofício sagrado e que podia gerar não apenas muita riqueza como também prestígio. Em assim sendo, ela havia ficado sabendo que na Confederação Amazônica, lugar onde o cacau havia se originado, havia outros meios de se fazer o alimento sagrado, alguns incrivelmente saborosos, pelo que ela resolveu pegar um navio e se dirigir para Belém do Pará, a maior cidade da Amazônia. A viagem que começou no Golfo do Mēhxico, seguiu pelo mar das Caraíbas até o Oceano Atlântico e a foz do rio Amazonas; como já havia terminado a estação dos furacões foi tido bem mais tranquila do que a que a levou da Inglaterra até o seu novo lar. 

Dario havia ficado em Veracruz, cuidando dos negócios. Ele de fato abandonara algumas práticas ruins e estava se dedicando com honestidade ao seu ofício, e ia fazendo amigos por onde andava, sempre curioso sobre os segredos dos pães e das tortillas, que aprendera a gostar. Mais: na fé dele diz-se que Deus havia dito a Moisés: "ore em um idioma que você não pecou até que a oração seja respondida. Moisés (que a paz esteja com ele) disse: Como?! Deus disse: Diga aos outros para orarem por você". Ele levava isso a sério e ais clientes que sabia reputados ou nos quais ele via justiça e bom proceder, ele sempre pedia que orassem por ele e Aurora, da qual sempre se lembrava e à qual não apenas era fiel, como também era devotado.

Uma das vantagens da nova viagem, para além de uma comida muito mais aprazível, era a presença constante da música e da dança. Não havia aquela seriedade taciturna e cinzenta da Inglaterra, mas uma atmosfera de muito mais animação. Quando Aurora saiu da Inglaterra, a banda que estava estourando nas paradas de sucesso era Pink Freud. Inclusive, ela cantarolava sempre o maior sucesso deles, uma canção em particular que fazia referência a um cara que era apaixonado por uma guria mais nova, mas que a representava na forma da mãe ausente que nunca lhe havia, de fato, dado amor e atenção. Era um pouco o caso dela, esse absenteísmo. Evidentemente, seja na Amazônia seja na República Comunitária do Brasil, tal canção não passou despercebida aos Barões da Terapia, outro grupo de sucesso que se ouvia também no Mēhxico. Por conta desses links, acabou fazendo amizades no navio e no fim da viagem já conhecia as camareiras, a maioria das garçonetes e até mesmo a capitã do navio.

Quanto a Belém era uma cidade enorme, de mais de 5 milhões de habitantes. A língua franca, como em toda a Confederação Amazônica, era o portugalego, que ela não falava, mas era o suficiente próxima do espanhol para que as pessoas a compreendessem e ela a elas. Como a cidade era uma pequena Babel,  a presença dela e de seu espanhol castiço não chamaram muita atenção, pelo que ela se hospedou em uma estalagem próximo ao mercado do Ver-o-Peso para primeiro sentir a nova metrópole, e depois resolver seus negócios.

No mercado Ver-o-Peso ela comprou mudas de açaí, bacaba e tucumã, bem como de cacau e cupuaçu, além de algumas ramas de mandioca doce e rizomas de araruta e ariá, que pretendia levar para os ejidos que forneciam a maior parte dos seus ingredientes. Na manhã seguinte resolveu experimentar os pratos da culinária local que não levassem sangue ou carne. Como soía acontecer, achou o tacacá uma comida que, embora feia, fosse provavelmente uma das mais saborosas do mundo. Por conta disso conseguiu arrumar umas sementes de jambu, que mandou despachar junto com as mudas que já havia comprado.

Depois que os três dias se recuperando de viagem e aproveitando a cidade de Belém ela finalmente tomou um pequeno barco até uma ilha próxima, onde havia uma aldeia na qual faziam chocolates tanto de cacau quanto de cupuaçu, que estavam entre os mais afamados da região, conforme ela ficou sabendo no Mehxico, de viajantes que haviam ido ao seu boticário.

Tenochtitlán: os começosOnde histórias criam vida. Descubra agora