16 - Irrecusável para os Olhos

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Faltando alguns dias para a grande noite, Aurora chamou Tsipekua para irem a um restaurantezinho perto da praia, comerem algo e tomarem uns tragos. 

_ Sabe, amanhã vamos lá, ver qual é.

_ Mas não marcaram para daqui 8 dias?

_Sim, mas as pessoas são animais de hábito. Não fariam todo um teatro apenas para nos impressionar, se algo de fato existir, certeza que estarão lá amanhã à noite. Basta a gente ir escondida e ficar observando. Me parece mais sensato.

_ Sabe,  é estranho você ser tão sensata. Tipo, não é um traço muito comum da sua personalidade. Você não adotou a vibe de jovem viúva rica...

_ Uau, você é fã ou hater? Mas me diga, quais os traços da minha personalidade?

_ Ser uma gostosa gordinha alcóolatra que tem problemas visíveis com drogas, que vive as emoções, se esconde dos sentimentos, colore o cabelo e flerta quase que por instinto?

_ Olha, é uma definição. Mas a seu respeito eu também teria umas considerações.

_ Mas me diga, e quais os traços mais marcantes da minha personalidade?

_ Ter cintura fina e trocar de personalidade como eu de penteado. Sei lá, uma sapatão legal que gosta de suculentas?

_ Pá, você se enganou! Nem sou legal. E até gosto de gatos. Thar praticamente me ama, inclusive. 

_ Ele não te ama, é um gatinho interesseiro isso sim. Sabe que é você quem mais dá comida, então... As duas riram até dar a hora de irem escondidas no local  que haviam marcado para elas na lua cheia seguinte. De fato, viram uma cerimônia  e também viram uma chuva que as deixou encharcadas e tremendo de frio. Chegaram em casa quase ao amanhecer. Inacreditavelmente, ainda sem perder o bom humor.

_ Cara, que insano, os malucos existem mesmo!

_ Aurora, você é uma mulher de pouca fé, criatura. Mas felizmente de bom humor, achei que você ia surtar quando começou a chover e eu te disse que tinha trazido só uma capa. 

_ Bobagem, acontece, sem falar que é como já disseram: "em um momento se vive uma vida". 

Semana seguinte, na noite de lua cheia as duas fecharam o pub mais cedo e se dirigiram até os penhascos do norte. Chegando, foram recepcionadas por uma sacerdotisa:

_ Sabíamos que vocês viriam. Na verdade quem são vocês duas: uma é a Antiga, a outra, a Arauta. Sim tem estávamos esperando vocês há muitas eras. Sentaram-se em uns banquinhos de basalto, que ficava em torno de uma grande mesa. Já havia muitas mulheres lá, sentadas.

_ Não estou vendo homens aqui, Tsipekua disse.

_ Daqui há pouco chegarão dois. Mas não vamos nos preocupar com isso agora, bebam com a gente, ela disse oferecendo um pouco de cerveja cerimonial, feita de batata doce e abacaxi.

_Tome essa bebida vai aumentar o mana de vocês.

Depois do serviço cerimonial e das bebidas sagradas, as mulheres todas começaram a dançar, das mais jovens até as anciãs e pelo menos até o início da terceira hora da madrugada. Quando estavam já todos em êxtase, foram trazidos dois homens encapuzados, que tinham as mãos amarradas por trás, por cordas de algodoeiro da praia, as quais foram atacadas argolas que havia numa das cabeceiras da mesa.

_ Amigas, amadas, mulheres. Esses dois homens encapuzados serão julgados por todas nós. O da esquerda é acusado de ter molestado uma de nós, que se encontra recolhida em casa e o da direita falhou como marido e como pai, e foi pego tentando fugir da ilha com as economias da família, para viver com outra mulher em Más a Tierra. Como são crimes de indignidade eles não serão julgados pelos próprios pares, mas por nós, e apenas por terem quebrado o tabu, no mínimo receberão 40 chibatadas e serão expulsos da ilha por 10 anos.

A regra entre elas era que todas as mulheres tinham direito de fazer perguntas e o julgamento terminava assim que uma delas se sentasse, o que aconteceu depois de uma hora.

_ Irmãs, filhas, amigas e companheiras aquele decisão vocês chegaram?

_ Grande Mãe, o molestador deve ser molestado. Que ele seja jogado do penhasco e que os caranguejos façam o trabalho deles, até que sua carne seja devorada e somente os seus ossos, restem. O homem foi então conduzido até a borda do penhasco de mais de 100 m de altura e jogado de lá no ponto no qual o rochedo e o mar brigavam todos os dias.

_ Quanto ao segundo homem, o da direita, o que vocês decidiram?

_ Grande Mãe, chegamos as duas decisões justas. Como ele não sabe qual mulher quer, que seja castrado e cada uma das duas metades fique com uma delas. Pelo roubo os homens normalmente punem com a morte, mas nós mulheres somos mais generosas, e alguém tem que lavar o pátio das festas sagradas, não é mesmo? Então que ele seja reduzido, agora que é inofensivo, no lugar do banimento, que ele seja escravo do templo, por um período de 10 anos.

_ Então que a sentença seja executada. Assim, usando as ferramentas apropriadas, um homem se viu livre da fonte da sua masculinidade tóxica, e quando retiraram o capuz as mulheres viram que era um dos comandantes da milícia dos costumes. Os gritos horrorizados do homem sendp capado deram frio na espinha de Aurora, visto que tais sacrifícios há muito haviam sido banidos de sua terra natal. Tsipekua, no entanto, observava tudo com deferência, como alguém acostumada a tais rituais.

Após isso, todas riram e mandaram quatro delas conduzi-lo até a prisão de recuperação.

_ Quanta vocês duas, a Grande Mãe disse que o disco que vimos vocês copiando com a máquina que faz pinturas não lhe servirá de nada sem esse mapa aqui. Tomem, é nosso presente! E aproveitem e levem mais bebida...

Embora estivesse bêbada, Tsipekua percebeu que havia algo errado com Aurora. Tinha passado tempo suficiente com sua companheira de viagens para ler nas entrelinhas do seu rosto.

-Aurora, está tudo bem?

-Ainda estou abalada com o sacrifício. Não faz sentido pra mim desperdiçar a vida humana daquele jeito, não importa o crime cometido.

- Não se trata de desperdicio, respondeu Tsipekua. O sacrifício em reverência aos deuses é sagrado, até mesmo essencial para a continuação da vida. Além do suor, é necessário o sangue para que a terra seja nutrida e, por sua vez, possa nos nutrir. O fato de os sacrificados serem criminosos, no fim das contas, é apenas uma questão prática.

Aurora desviou o olhar de Tsipekua, parecendo ainda mais consternada. Aquelas justificativas não foram nem perto de suficientes para apagar da sua retina a imagem do homem despedaçado contra as pedras do penhasco.

Tsipekua então sacou do bolso um pacote com um pó fino e avermelhado.

-Aurora, cheire esse pô mágico que é produzido pelos aymaras. Eu te mostro como é, assim. Já reparou como a Lua está bonita? Vamos para o pátio.

Talvez fosse o pó, a Lua, ou a mão quente de Tsipekua puxando a sua em direção ao pátio, mas Aurora começou a finalmente relaxar. De repente, quando o efeito do álcool cessou, ela ficou particularmente animada, em um tipo peculiar de êxtase.

_ Está vendo aquela estrela quase ao lado da lua?

_ Não estou vendo estrela alguma, Tsipekua, disse Aurora.

_ É que ela é uma estrela essencial, você não pode enxergá-la com os olhos...

_ Tsipekua, isso foi revoltante, disse Aurora, sorrindo...

_ É sério! Feche os olhos que eu garanto que você vai vê-la, garanto.

Inocentemente, Aurora de fato os cerrou e levou uns três segundos para perceber que estava sendo beijada, e mais um para retribuir.  Foi a primeira pessoa que Aurora beijou após a morte do seu marido. 

O beijo foi bom, mas ela não conseguia se livrar de uma culpa que rondava sua alma, como se sobreviver por si só fosse pecado. Todavia, o dia amanheceu sorrindo e Aurora o acompanhou na sensação, quando percebeu a amiga ao lado dela. Como fazia frio, ajeitou melhor as cobertas e só acordaram em definitivo próximo da hora do almoço.


Tenochtitlán: os começosOnde histórias criam vida. Descubra agora