13 - As Artes da Terra

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Como agora na prática o boticário dela estava sendo operado pelo Estado Mexica, e eles eram muito criteriosos em repassar os lucros de direito, bem como executar as receitas apenas a ela permitidas com bastante precisão e eficiência, acabou que ela se viu rica após o atentado e resolveu conhecer melhor o país que a havia acolhido.

O primeiro lugar que resolveu ir era uma cidade chichimeca de 10 mil habitantes chamada Tangamandapio, habitada por falantes do nahuatl e do purépecha, localizada a cerca de 450 km ao norte de Tenochtitlán, mas franjas de uma serra a 1.700 metros de altitude. Altitude boa, clima bom, lugar bonito.

Na verdade Michoacán era um estado muito interessante, que começa na franja ocidental do planalto mexicano e segue até o oceano Pacífico, sendo habitado por cerca de cinco milhões de pessoas. Essa era toda informação de que ela dispunha sobre a região, isso e o fato de que fora escolhida pelo povo de Vera Cruz para representar o estado em um famoso concurso de culinária acabaram conduzindo-a até lá.

Aurora chegou uma semana antes do concurso, para providenciar os melhores ingredientes; pela regra, inclusive por que pelas regras ninguém poderia gastar mais do que 20 moedas de prata com a compra deles. Mesmo recorrendo a estratégias que foram de fazer propaganda para um determinado ejido até simplesmente flertar com o proprietário de uma banca de tempero; ela foi bastante  honesta e escrupulosa quanto a isso, e conseguiu que alguns seus fornecedores não vendessem os produtos deles para mais ninguém. Comprou umas pequenas porções de verduras, algumas frutas, uns laticínios poucos, fungos,  algumas doses de bebida, batatas da casca vermelha, arroz das terras altas, um favo de mel, temperos e especiarias, dois cocos verdes, uns 20 grãos de cacau, meio copo de vinagre de mezcal, uma fava de baunilha e uma laranja madura muito perfumada. Como ainda havia restado algum dinheiro comprou também um feixe de cedro e carvão de carvalho. Ela ainda estava de luto, então não era de bom tom comer carne, de modo que ela arriscou-se e foi a única das 32 participantes que iria preparar uma refeição vegetariana.

A competição funcionava por etapas: todos os 32 participantes tinham o direito de preparar a entrada, os 16 melhores ganhariam o direito de preparar o prato principal; os oito melhores dentre estes poderiam fazer a sobremesa e; as 4 melhores sobremesas ganhavam direito de preparar uma bebida. O melhor conjunto levava o prêmio, cuja degustação era cega, para evitar que quaisquer cozinheiros fossem beneficiados ou prejudicados.

A ENTRADA
A maioria dos concorrentes estavam fazendo algo a base de abacate, legume que ela sequer tinha comprado. Para enfrentar esse trivial ela preparou algumas spanakopitas de massa fresca, recheadas com batata, espinafre e uns pedacinhos e queijo de cabra, temperadas com pimenta selvagem e servidos com tomates cereja, tanto amarelos quanto vermelhos, folhas muito frescas de rúcula e palmito. Para finalizar ela regou tudo com a pequena porção de azeite de oliva. Levou o terceiro lugar e se classificou para a fase seguinte.

REFEIÇÃO PRINCIPAL
Decidida a não usar carne essa etapa acabou se tornando sem dúvida, a mais difícil para ela. Resolveu preparar uma espécie de guisado feito com as batatas restantes, alguns huitlacoche e as favas verdes,  temperado com gengibre e perfumado com zimbro. Assou as espigas de milho na própria palha, na madeira aromática. Fez o arroz o mais solto possível, com  discretíssimos grãos de cardamomo moído e pimenta selvagem. Assou a parte mais macia do palmito e temperou-o com molho à base de mel, semente de mostarda bem moídas e limão, este também muito discreto. Fez uma salada com os tomatinhos, a parte interna e mais macia de alface e  folhas jovens de beterraba, temperando tudo com sal-gema e vinagre de mezcal. Não se sabe se pela ousadia, pelo sabor ou pelo inusitado, ela novamente ficou em terceiro lugar.

SOBREMESA
Aurora fez uma dúzia de delicados crepes, temperados com alguns grãos de alcaravia; escorreu o mel dos favos e o misturou pedaços de pecã, tequila, casca ralada da laranja maduraa e em seguida estourou com delicadeza no creme de leite fresco e uma quantidade muito sutil de canela do Ceilão. Não flambou. A sobremesa dela se sagrou campeã.

BEBIDA
Aurora sabia da hipocrisia asteca de gostar de álcool mas fingir não bebê-lo. Para seduzir os membros do júri, espremeu bem os abacaxis, temperou o suco com mel selvagem de abelhas sem ferrão e jogou dentro pequenos cubos de gelo feitos de água de coco e tequila. Ao mesmo tempo torrou os grãos de cacau, misturou com um pouco de pimenta e alcaravia, e preparou à moda asteca, na água quente. Chamou a composição de shot duplo e explicou que primeiro deveriam tomar o suco de abacaxi e só então chocolate. A vitória nessa fase, e no concurso como um todo, foi incontestável e ela fora premiada com facas de obsidiana, 2 pilões de jade, talheres de ouro e recipientes de prata.

O AFTER

Quando descobriram que ela havia sido a vencedora, os convites para cear nas casas dos locais multiplicaram-se; para não ofender ninguém, ela resolveu no dia seguinte almoçar no templo das mulheres e à noite, tomou alguns pulques com as anciãs, que a apresentaram aos guerreiros mais garbosos e às sacerdotisas mais bonitas, pelo que a sua madrugada também foi muito divertida. Toda a pequena cidade se encantara com ela, que partiu ao amanhecer, com mais ressaca do que vida. 

Ela estava mesmo muito mal e acabou tendo que parar em uma pequena vila perto da cidade, chamada Ocumicho.  Tão logo estacionou, pegou os brotos de mamão que havia roubado de uma quinta na beira da estrada, entrou em uma bodega recém aberta, perguntou se havia banheiro, fez a bebida mágica , vomitou o que tinha que vomitar, enxaguou a boca, sentou em uma cadeira, esperou a alma voltar para o corpo e pediu algumas tortilhas, duas bananas e suco de abacaxi. Não havia, sim, podia ser de laranja. Gracias. 

_ Mãe?!?

_ Olá, Aurora. Você precisa se cuidar, não é mesmo? 

_ Eu estou bem, mãe.

_ Então vamos começar de novo. Você precisa se dizer a verdade. 

_  Eu estou com saudades. Sabe, de papai, de Dario, da senhora, de quando a vida era simples e boa.

_Eu estou aqui, Aurora. Eu estou aqui.

_ Mãe, eu ouço sua voz, eu posso sentir seu cheiro, mas sei que no instante que eu olhar para a senhora, você se vai. Nós duas sabemos disso. Tem sido assim desde sempre. Tudo é diferente mas nada muda ou passa a fazer sentido. Eu tenho estado tão sozinha.

_ Você é dramática. Acontece de se fazer escolhas certas que dão errado, minha filha. É por isso que se chama vida... Não adianta chorar.

_Mas alivia, né? Por isso essas coisas, mãe. E chocolate.  Sabe, é por tudo.

_ E quem disse que eu não te entendo? Aqui não temos a ilusão do tempo, mas eu sinto que o sono está vindo. Não é medo, mas não sei onde vou acordar, não é mesmo? Eu não queria que você ficasse sozinha, com medo.

_ Eu não tenho medo! 

_ Mas anda sem coragem, o que é até pior. 

Mãe estava certa, ela abriu os olhos.

_ Moça, aqui seu pedido. 

_ Muito obrigado, criança.

_ Já sou mocinha. E seu cabelo é colorido, achei bonito!

Aurora sorriu e pediu café. Sua mãe estava certa. Era necessário pelo menos ter medo. Fazer escondido o que era errado não a estava mais desafiando e não havia nem pó nem tequila no mundo que bastasse para tanto vazio. Não havia. Ela pagou o pedido, deixou algumas moedas de prata para a criança e voltou para a estrada. Talvez realmente devesse parar de beber, pensava enquanto abria uma pequena garrafa do famoso refrigerante com ingredientes andinos e de África. Morno como ela própria. Na rádio, outra música morna: "o infinito é realmente um dos deuses mais lindos..." Ela se lembrou por que bebia.

Tenochtitlán: os começosOnde histórias criam vida. Descubra agora