Um concerto sagrado

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Apesar do novo ponto de vista, a senhorita Cornelia não pôde evitar ficar um pouco perturbada com a próxima façanha dos filhos do ministro. Em publico ela encarou a situação esplendidamente, rebatendo todas as fofocas com a essência do que Anne dissera na época dos narcisos, articulando-a com tamanho ímpeto que os ouvintes se descobriram sentindo-se tolos e começavam a pensar que, afinal de contas, eles estavam dando demasiada importância a uma travessura infantil. Em particular, no entanto, a senhorita Cornelia se permitia o alívio de queixar-se com a Anne.

- Querida Anne, eles deram um concerto no cemitério na última quinta-feira durante a reunião da igreja metodista. Lá estavam eles, sentados sobre o túmulo do Hezekiah Pollock, onde cantaram por uma hora inteira. Tudo bem que eles cantaram só hinos, praticamente, e não teria sido tão mal se tivessem feito só isso. Porém eu ouvi dizer que eles finalizaram com Polly Wolly Doodle a plenos pulmões justo quando o diácono Baxter estava orando.

- Eu estava lá naquela noite - contou Susan - e, embora não tenha contado nada para você, querida senhora, não pude deixar de pensar que foi uma grande lástima eles terem escolhido aquela noite em particular. Foi de gelar o sangue ouvi-los cantando na morada dos mortos, gritando aquela canção frívola com toda a força.

- Não entendo o que você estava fazendo na igreja metodista - disse acidamente a senhorita Cornelia.

- Até onde sei, o metodismo não é contagioso - respondeu Susan com rigidez. - E como eu ia dizer antes de ser interrompida, por mais que tenha me sentido mal, não dei o braço a torcer. Quando a esposa do diácono disse na saída, "que espetáculo mais vergonhoso!", eu falei, olhando dentro dos olhos dela, "eles cantam lindamente, e nenhum integrante do coral de vocês se dá ao trabalho de vir às reuniões de reza, pelo visto. As vozes deles só estão afinadas aos domingos!". Ela foi embora sem dizer mais nada e senti que a senhora Baxter tinha ouvido o que precisava. Só que minha resposta teria sido muito mais eficaz, querida senhora, se eles tivessem deixado de fora Polly Wolly Doodle. É realmente horrível pensar naquela música sendo cantada no cemitério.

- Alguns dos falecidos cantavam aquela música em vida, Susan. Talvez eles tenham gostado de ouvi-la - sugeriu Gilbert.

A senhorita Cornelia lançou um olhar de reprovação e decidiu que, em uma ocasião futura, iria sugerir a Anne que advertisse o doutor a não dizer coisas desse tipo, pois podiam prejudicar a sua profissão. As pessoas poderiam pensar que ele não era ortodoxo. Marshall dizia coisas bem piores com frequência, era bem verdade, só que ele não era uma figura pública.

- Dizem que o pai deles estava no escritório, com as janelas escancaradas e que não percebeu nada. Estava absorto em algum livro, como sempre, mas eu conversei com ele ontem, quando me visitou.

- Como se atreveu, senhora Marshall Elliott? - perguntou Susan em tom de censura.

- É hora de alguém se atrever a fazer alguma coisa! Ora, há quem diga que ele não sabe de nada sobre aquela carta no Jornal porque ninguém a mencionou para ele. O senhor Meredith nunca lê o periódico. Achei que ele deveria inteirar-se do ocorrido para evitar outros concertos do tipo. Ele disse que iria "conversar com eles", mas é óbvio que se esqueceu disso assim que passou pelo portão. Aquele homem não tem noção do ridículo, Anne, acredite em mim. O sermão do domingo passado foi sobre "a educação das crianças". Foi um belo sermão, de fato e todo mundo na igreja pensou, "quem dera ele praticasse o que prega".

A senhorita Cornelia cometeu uma grande injustiça ao pensar que o senhor Meredith logo se esqueceria daquela conversa. Ele foi para casa bastante preocupado e quando as crianças voltaram do Vale do Arco-Íris naquela noite, bem mais tarde do que deveriam, ele os chamou em seu escritório.

Eles entraram, um tanto espantados. Era uma atitude muito incomum para o pai deles. O que ele iria dizer? Eles vasculharam a memória por alguma transgressão recente de grande importância e não se lembraram de nenhuma. Carl derramara um pote cheio de geleia no vestido de seda da senhora Flagg duas noites atrás, quando a tia Martha a convidara para ficar para o jantar. Todavia o senhor Meredith não tinha percebido, e a senhora Flagg, que era uma alma bondosa, não tinha feito caso. Além disso, o Carl fora punido tendo que usar o vestido de Una pelo resto da noite.

De repente, ocorreu a Una que talvez o pai fosse contar que iria se casar com a senhorita West. Seu coração começou a bater violentamente. Então ela percebeu que o senhor Meredith parecia muito sério e angustiado. Não, não podia ser isso.

- Crianças - disse o senhor Meredith -, fiquei sabendo de uma coisa que me entristeceu bastante. É verdade que na noite da quinta-feira passada vocês cantaram músicas indecentes no cemitério durante uma reunião da igreja metodista?

- Grande César, papai, não nos lembramos da reunião - exclamou Jerry, desolado.

- Então, é verdade?

- Ora, papai, não sei o que você quer dizer com músicas indecentes. Nós cantamos hinos... Foi um concerto sagrado, sabe? Que mal tem isso? Não nos ocorreu que haveria uma reunião de reza dos metodistas naquela noite. Eles costumavam se reunir às terças e desde que eles mudaram o dia é difícil lembrar.

- Só cantaram hinos?

- Bom... - disse Jerry corando - cantamos Polly Wolly Doodle no final. Faith disse, "vamos cantar algo alegre para encerrar", mas não tivemos intenção de causar nenhum mal, papai, de verdade.

- O concerto foi ideia minha, papai - disse Faith, com medo de que o senhor Meredith colocasse toda a culpa em Jerry. - Você sabe que os metodistas tiveram um concerto sagrado na igreja deles três semanas atrás. Achei que fosse ser divertido fazer um igual ao deles. É claro que eles também rezaram durante o deles, mas nós deixamos essa parte de fora porque as pessoas acharam horrível termos rezado no cemitério. Você estava sentado aqui o tempo todo e não nos disse nada.

- Eu não percebi o que vocês estavam fazendo. Sei que não é uma desculpa aceitável, é claro. Pensando bem, sou mais culpado do que vocês. E por que vocês cantaram aquela música mundana no fim?

- Não pensamos direito - murmurou Jerry, sentindo que era uma péssima desculpa, considerando que ele havia dado uma bronca em Faith no clube da Boa Conduta por não pensar antes de agir. - Nós sentimos muito, pai, de verdade. Pode nos repreender com severidade, nós merecemos um bom castigo.

Entretanto, o senhor Meredith não fez nada disso. Ele se sentou, chamando os pequenos culpados para mais perto e conversou com eles com gentileza e compreensão. Eles foram acometidos por um misto de remorso e vergonha, e entenderam que não podiam mais ser tão tolos e inconsequentes.

- Temos que aplicar um castigo daqueles em nós mesmos por conta disso - sussurrou Jerry enquanto subiam as escadas. - Faremos uma reunião do Clube da Boa Conduta amanhã de manhã para decidirmos. Nunca vi o papai tão aflito. Como eu gostaria que os metodistas escolhessem um dia para a reunião deles, ao invés de ficar passeando pela semana.

- De qualquer forma, estou contente por não ter sido o que eu temia - murmurou Una para si mesma.

Atrás deles, no escritório, o senhor Meredith sentou-se à mesa e enterrou o rosto entre os braços.

- Que Deus me ajude! Sou um péssimo pai. Oh, Rosemary! Se ao menos você tivesse dito sim!

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