"Que venha o flautista"

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- Então - disse a senhorita Cornelia - o casamento duplo vai ser em meados desse mês.

Era uma noite gelada do início de setembro e Anne havia colocado fogo na madeira trazida pelo mar na lareira que estava sempre posta. A senhorita Cornelia e ela se aqueciam diante das chamas mágicas.

- É formidável, especialmente pelo senhor Meredith e a Rosemary - disse Anne. - Estou feliz como se fosse o meu próprio casamento. Senti-me como uma noiva novamente noite passada, quando visitei a Rosemary e vi o enxoval dela.

- Ouvi dizer que parece o de uma princesa - disse Susan de um canto escuro, onde mimava seu menininho moreno de sol. - Também fui convidada para apreciá-lo e pretendo ir algum dia desses. Dizem que a Rosemary usará um vestido branco de seda e um véu, e que o da Ellen será azul-marinho. Concordo plenamente que é muito sensato da parte dela, mas, se algum dia eu me casar, prefiro a cor branca e o véu, pois combina mais com uma noiva.

A imagem da Susan de "branco e de véu" surgiu na mente de Anne e foi quase demasiada para ela.

- Quanto ao senhor Meredith - disse a senhorita Cornelia -, o noivado em si já foi suficiente para torná-lo outro homem. Ele não é mais tão sonhador e distraído, acredite em mim. Fiquei muito aliviada ao descobrir que decidiu fechar a casa ministerial e mandar as crianças para a casa dos outros durante a lua-de-mel! Se os tivesse deixado sozinhos por um mês com a velha tia Martha, eu despertaria todas as manhãs esperando encontrar aquela casa em chamas.

- A tia Martha e o Jerry virão para cá - disse Anne. - Carl ficará com o ancião Clow. Não sei para onde as meninas irão.

- Oh, elas ficarão comigo - disse a senhorita Cornelia. - Fiquei mais do que contente. Além disso, a Mary não teria me dado paz enquanto eu não me propusesse. A Sociedade Assistencial fará uma faxina de cabo a rabo na casa antes que os noivos voltem e o Norman Norman se prontificou a encher a despensa de vegetais. Norman Douglas está irreconhecível, acredite em mim. Está extasiado porque vai se casar com Ellen West depois de esperar por ela a vida inteira. Se eu fosse a Ellen... mas enfim, eu não sou, e se ela está satisfeita, eu também posso ficar. Muitos anos atrás, quando ainda era uma colegial, ela disse que não queria um cachorrinho manso como marido. O Norman não tem nada de manso, acredite em mim.

O sol estava se pondo sobre o Vale do Arco-Íris. O lago estava encoberto por um maravilhoso manto púrpura, dourado e carmesim. Uma leve névoa azulada descansava sobre a colina ao Leste, sobre a qual uma lua imensa, alva e redonda pairava como uma bolha argêntea.

Todos estavam presentes na pequena clareira, Faith e Una, Jerry e Carl, Jem e Walter, Nan e Di, e Mary Vance. Haviam feito uma celebração especial, pois aquela era a última noite do Jem no Vale do Arco-Íris. Na manhã seguinte ele partiria para Charlottetown, para estudar na Queen's Academy. O círculo encantado se romperia, apesar de toda a alegria durante a breve festividade, havia a sombra do pesar em cada um dos jovens e felizes corações.

- Vejam, há um imenso palácio dourado no ocaso - disse Walter, apontando. - Reparem na torre reluzente e nos estandartes rubros que despontam dela. Talvez um conquistador esteja voltando da batalha e elas estejam hasteadas para honrá-lo.

- Oh, quem dera pudéssemos voltar aos dias de outrora - exclamou Jem. - Adoraria ser um soldado, um importante e triunfante general. Eu daria tudo para participar de uma grande batalha.

Bem, Jem se tornaria um soldado e teria a maior batalha já travada no mundo, mas isso pertencia ao futuro distante. Sua mãe, de quem ele era o primogênito, gostava de olhar para os filhos e agradecer a Deus que os "dias de outrora" que Jem admirava tanto haviam passado, e que os jovens do Canadá nunca mais precisariam travar guerras "pelas cinzas de seus pais e os templos de seus deuses".

A sombra da Grande Guerra ainda não havia mostrado seus primeiros sinais. Os rapazes que viriam a lutar, e talvez a cair, nos campos da França e de Flanders, de Gallipoli e da Palestina, ainda eram alunos travessos com o prospecto de uma vida justa pela frente, as moças cujos corações seriam destroçados ainda eram meninas cheias de esperanças e sonhos.

Lentamente, o rubro e o dourado dos estandartes da cidade do ocaso se apagaram e lentamente a figura do conquistador desapareceu. O crepúsculo tomou conta do vale e o pequeno grupo ficou em silêncio. Walter estivera lendo mais uma vez seu adorado livro de mitos e lembrou-se de como havia imaginado o Flautista de Hamelin chegando ao vale em um fim de tarde como aquele.

Ele começou a falar liricamente, em parte porque queria emocionar os companheiros, em parte porque algo além dele parecia falar através de seus lábios.

- O Flautista se aproxima. Está mais próximo do que naquele dia em que o avistei. Sua capa longa e escura esvoaça ao vento. Ele toca... E toca... E devemos segui-lo... Jem, Carl, Jerry e eu pelo mundo afora. Ouçam... Ouçam, conseguem ouvir sua melodia selvagem?

As garotas estremeceram.

- Você só está fingindo - protestou Mary Vance -, e eu gostaria que parasse. É como se você conseguisse torná-lo real. Detesto esse seu Flautista.

Jem começou a rir alegremente. Ele subiu em um monte de terra, alto e esplêndido, olhando para o horizonte com os olhos destemidos. Havia milhares como ele na terra dos bordos.

- Que venha o Flautista e que seja bem-vindo - exclamou, acenando. - Eu o seguirei ao redor do mundo.


FIM.

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