Pobre Adam!

54 6 0
                                    

Quando Una chegou em casa, Faith estava deitada de bruços na cama, inconsolável. A tia Martha havia matado o Adam, ele encontrava-se em uma travessa na dispensa naquele exato momento, amarrado e temperado, juntamente com o fígado, o coração e a moela. A tia Martha não deu a mínima para a dor e a fúria da menina.

- Precisávamos preparar alguma coisa para receber aquele ministro de fora - explicou. - Você já está bem grandinha para fazer todo esse escarcéu por causa de um galo velho. Mais cedo ou mais tarde, ele teria que ser morto, não se faça de desentendida.

- Vou contar o que você fez quando o papai voltar - soluçou Faith.

- Não incomode o coitado do seu pai, ele já tem problemas suficientes. E sou eu quem cuida dessa casa.

- O Adam era meu, foi um presente da senhora Johnson e você não tinha o direito de tocá-lo - esbravejou Faith.

- Não seja malcriada. O galo está morto e fim de papo, não vou servir ensopado de carneiro frio para um ministro da igreja que nem conheço. Fui muito bem-educada, por mais que tenha sido rebaixada na escala social.

Faith não desceu para jantar naquela noite nem foi à igreja na manhã seguinte. Na hora do almoço, porém, ela sentou-se à mesa, com os olhos inchados de tanto chorar e uma expressão fria.

O reverendo James Perry era um homem esguio e rubicundo, com um bigode branco eriçado, sobrancelhas brancas fartas e uma careca brilhante. Tinha poucos atrativos físicos e era uma pessoa muito fastidiosa e pomposa. Porém mesmo que ele se parecesse com o arcanjo Miguel e falasse na língua dos homens e dos anjos, Faith o teria detestado com todo seu coração. Ele fatiou Adam com destreza, exibindo as mãos gordas e brancas e o deslumbrante anel de diamante. E também fez comentários joviais durante toda a performance. Jerry e Carl riram, e até Una esboçou um sorriso, como exigiam os bons modos. Faith, contudo, continuou de cara fechada. O ministro a considerou escandalosamente mal-educada, pois quando ele fez um comentário bajulador para Jerry, Faith o interrompeu com grosseria para contradizê-lo. O reverendo juntou as sobrancelhas ao encará-la.

- Garotinhas não deveriam interromper os mais velhos - disse -, e tampouco deveriam contradizer aqueles que sabem mais do que elas.

Aquilo deixou Faith em um estado de ânimo ainda pior. Ser chamada de "garotinha", como se ela não fosse maior que a gorduchinha Rilla Blythe de Ingleside! Era intolerável. E como comia aquele abominável senhor Perry! Ele até roeu os ossos do pobre Adam. Faith e Una mal tocaram na comida e olharam para os garotos como se fossem dois canibais. Faith sentia que se aquela terrível refeição não terminasse logo, ela iria acabar jogando alguma coisa na cabeça lustrosa do reverendo. Felizmente, o senhor Perry considerou a torta de maçã borrachuda da tia Martha demasiada para seus poderes de mastigação e o repasto chegou ao fim, após um longo discurso de graças no qual o ministro agradeceu devotamente pela comida que a bondosa e gentil Providência havia provido para sustento e prazer temperado.

- Não foi Deus que proveu o Adam a você - murmurou Faith com rebeldia.

Os garotos se alegraram ao escaparem para o quintal, Una foi ajudar a tia Martha com os pratos, ainda que a velha rabugenta nunca aceitasse de bom agrado a tímida assistência da menina e Faith dirigiu-se para o escritório, onde um fogo aconchegante ardia na lareira. Ela achou que conseguiria escapar do odioso senhor Perry, que havia anunciado suas intenções de tirar um cochilo à tarde, mas assim que ela se instalou em um canto com um livro ele entrou, parando diante da lareira e começou a examinar o escritório bagunçado com um ar de desaprovação.

- Os livros do seu pai estão em uma situação deplorável, minha garotinha - disse severamente.

Faith continuou taciturna no canto, sem dizer nada. Ela não iria falar com aquela... Aquela criatura.

- Você deveria tentar colocá-los em ordem - continuou o senhor Perry, brincando com a corrente do belo relógio e sorrindo condescendentemente para Faith. - Você tem idade suficiente para tais tarefas. A minha filha tem só 10 anos e já é uma excelente ajudante e companheira para a mãe, é uma criança muito doce. Gostaria que você tivesse o privilégio de conhecê-la, ela poderia ajudá-la de várias maneiras. Evidentemente, a você foi negado o inestimável privilégio de ter os carinhos e aprendizados de uma mãe. Uma triste carência, uma carência muito triste. Já conversei com o seu pai sobre esse assunto, chamando-lhe a atenção para os deveres dele, mas não houve resultados por enquanto. Tenho fé que ele despertará para as responsabilidades antes que seja tarde demais. Enquanto isso, é seu dever e privilégio esforçar-se para ocupar o lugar da sua santa mãe. Você poderia ter grande influência sobre seus irmãos e a sua irmãzinha e poderia ser uma verdadeira mãe para eles. Receio que você não reflita sobre essas coisas como deveria. Minha querida criança, permita-se abrir os seus olhos para elas.

A voz pegajosa e complacente do senhor Perry escorria pelos ouvidos de Faith. Ele estava em seu elemento. Nada o satisfazia mais do que impor as leis morais, ser pedante e aconselhar. Não tinha a menor pretenso de parar e não parou. Parado diante da lareira, com os pés firmemente plantados sobre o tapete, ele despejava uma torrente de chavões. Faith não ouviu uma palavra sequer. Seus olhos castanhos olhavam com um deleite travesso e crescente a longa cauda do fraque preto dele. O senhor Perry estava parado muito próximo ao fogo. A cauda começou a ficar chamuscada... A cauda começou a soltar fumaça. Ele prosseguia, encorajado pela própria eloquência. A fumaça aumentou e uma faísca minúscula voou da madeira e pousou na vestimenta. Ela ganhou vida, aumentando até formar um fogo sem chama. Faith não conseguiu mais se conter e começou a rir disfarçadamente.

O senhor Perry interrompeu-se, enfurecido pela impertinência. De repente, percebeu o cheiro de roupa queimada que enchia a sala. Ele virou-se e não viu nada. Então ele segurou a cauda do fraque e a puxou para frente, já havia um buraco considerável em um dos lados no fraque novo dele. Chacoalhando o corpo, Faith ria descontroladamente da pose e da expressão dele.

- Você percebeu que meu fraque estava pegando fogo? - exigiu saber, furioso.

- Sim, senhor - respondeu ela com obediência.

- E por que não disse nada?

- O senhor disse que não era educado interromper os mais velhos - disse Faith, ainda mais obedientemente.

- Se eu fosse a sua mãe, eu lhe daria uma surra da qual você se lembraria pelo resto da vida, mocinha - disse o ministro da igreja muito, muito encolerizado, marchando para fora do escritório. O casaco do segundo melhor terno do senhor Meredith não lhe serviria, de maneira que ele teria que realizar o culto com o fraque chamuscado. O senhor Perry não percorreu o corredor com a usual consciência da honra que conferia ao recinto. Ele nunca mais concordou em trocar de púlpitos com o senhor Meredith e foi meramente civilizado com o mesmo quando se encontraram por alguns minutos na estação na manhã seguinte. Não obstante, Faith sentiu uma satisfação sombria. Adam havia sido parcialmente vingado.

Vale do Arco-Íris Onde histórias criam vida. Descubra agora