4. Pedidos - Briseis

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Ao longo da minha adolescência sempre ouvi que vivia imersa demais em fantasias para alguém da minha idade. O que eu poderia fazer? Mundos mágicos me transportavam para lugares onde eu nunca poderia estar, com poderes ilimitados, vivendo sonhos que eram impossíveis no mundo real. Para mim, as trajetórias dos mocinhos, que estavam acima de todo o mal e destinados ao triunfo no fim da jornada, seria a minha trajetória também se a magia fosse algo verdadeiro.

Acontece que mundos mágicos de fato existiam. Porém, eu poderia ser qualquer coisa, menos uma mocinha. Mocinhas não sentiam prazer em drenar a vida de alguém, por mais cruel que ele pudesse ser; mocinhas não roubavam poderes, enganavam pessoas e destruíam sonhos. Elas eram graciosas e justas, sempre alinhadas ao lado certo, com atitudes corretas e recompensas à altura de seus grandes corações.

Com certeza eu não era qualquer uma daquelas coisas.

Segundo as histórias, meu destino era trair aqueles que ousei chamar de amigos. Destruir o mundo que eles lutavam, desde o nascimento, para salvar. Eu era uma impostora, levada por engano ao Vale das Estações e mantida por engano tão próximo aos escolhidos que agora eles não poderiam escapar de mim.

Por que comigo?

Dentre todos os malditos meltas à solta no mundo humano, por que justamente eu os encontrei?

Desejei poder olhar a vila dos matruakys, com seus cristais multicoloridos, relva macia e aromas fantásticos sem que uma sombra pairasse sobre minha cabeça. Sem a sensação constante que comprimia meu peito e dizia que eu traria a desgraça para aquele povo que lutava para se reerguer. Assim como fizera com Rosilda, Luzia e... Heitor.

Pensar nele doía, como se mil lâminas afiadas cortassem a minha pele. O garoto que me segurou pela mão, impedindo que os pesadelos me levassem e abdicando o propósito da sua vida apenas para que eu pudesse viver... Como nós poderíamos estar em lados opostos? E como, mesmo assim, eu não conseguia evitar o frio que me invadia o estômago quando ele me olhava?

Aqueles pensamentos me consumiam e impediam que eu pudesse desfrutar do novo mundo em que estávamos. Embora alguns detalhes fossem tão extraordinários que tornassem difícil para mim ignorá-los, eu estava focada demais em impedir que desgraças me acompanhassem.

A noite já caia sobre o povoado-entre-cordilheiras quando Sjin nos delegou aos cuidados de Tanai, a matruaky-mãe que deixou os meninos repetirem o ensopado mais cedo.

Tanai era legal, mas, dentre todos os hanarianos que conhecemos naquele dia, Laya e Sjin eram as que eu mais gostava. Ainda que esta última se mantivesse resistente em dar crédito à nossa história de salvadores vindos do mundo humano.

Eu a entendia.

Sjin possuía todos os motivos para desconfiar de nós:  éramos seres estranhos, com roupas, costumes e um idioma estranho, que apareceram misteriosamente logo após uma guerra que destruíra metade dos matruakys. Uma guerra indiretamente causada pela abertura de um portal para o mundo de onde vínhamos.

Como se nada daquilo fosse suficiente, ainda havia a possibilidade dos matruakys serem entregues nas mãos do perverso Crino caso Sjin não se saísse bem em seu período de teste. Algo no jeito daquele nixge me causava arrepios. Ele parecia alguém disposto a nos dar aos meltas se fosse vantajoso.

E ali estava um paradoxo perfeito: uma provável melta julgando a índole de um nixge.

Me recriminei. Desde que soube que pertencia a Hanaros minha mente tendia a pensar em dicotomias: preto e branco, bom e mau, claro e escuro. Mas talvez cores opostas não pudessem existir sempre sozinhas e sim em conjunto... Algo como o tom cinzento que respingava em todas as paisagens que nos cercavam.

Ventos do Outono - Livro 2Onde histórias criam vida. Descubra agora