31. Passado - Briseis

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Encarar medos de frente estava me saindo uma atividade muito bem-vinda: primeiro tinha sobrevivido à permanência num lugar chamado mar sem fim. Depois, havia encarado Karen e feito ela entender que estava pouco me lixando para a imagem que tinha e espalhava de mim.

A Briseis de dois meses atrás ficaria orgulhosíssima.

Havia a parte em que eu negava e escondia os meus sentimentos, mas considerei que não fosse algo que pudesse me dar ao luxo de lamentar.

Assim que a imperatriz saiu da minha cabine batendo os pés como uma criança birrenta, aproveitei para terminar de fechar as escotilhas restantes.

Minhas mãos tremiam. E considerei que talvez só tivesse com a impressão de que era mais forte que o medo porque passara o dia preocupada, tentando prever quando Karen explodiria; de forma que mal tive tempo de temer onde estava. Porém, sozinha, ouvindo o bater das ondas ao meu lado, as coisas mudavam de cenário.

Após ocluir a última escotilha, avaliei com orgulho os lençóis pendurados como fantasmas, bloqueando a luz noturna do truhon.

Tentei resistir bravamente ao sono, sentada de pernas cruzadas na cama da cabine, encarando os padrões elegantes que cobriam as paredes de madeira. Não adiantou. Três cochilos depois, decidi recorrer à tática que desenvolvi no povoado matruaky para evitar que o sono me abatesse: manter o medo por perto. Ficaria até o amanhecer encostada nas amuradas, observando a imensidão de água abaixo de mim. Se eu permanecesse mais um segundo sequer no camarote dormiria, e seria questão de tempo até que meus poderes conjurassem as águas que afundariam o Andarilho em uma nova tragédia aquática.

Antes de sair, fui até o pequeno banheiro da cabine, na esperança de aumentar minha tolerância, me expondo a uma concentração menor de água por determinado tempo.

Percebi que, diferente do mundo humano, não havia chuveiro e a água caía por todo o teto da estrutura equivalente ao box. Era como se ao invés de tomando banho, eu estivesse sob a chuva. Uma experiência relaxante e que não me causou terror algum.

Ao terminar, encarei o espelho pendurado ao meu lado. Era um objeto parecido com o que vi na fortaleza Meskder: feito de água corrente em fluxo constante, embora menor. Ele refletiu uma versão diferente de mim, um pouco mais colorida do que estava acostumada. Notei com espanto os fios dos cabelos que já se prolongavam quase nos ombros. A luta com Heitor tinha sido há cerca de três dias. Como poderiam ter crescido tanto?

Seria uma característica mágica ter o crescimento acelerado dos pelos corporais? Não, provavelmente não. Do contrário, eu já não teria as pernas depiladas e sobrancelhas levemente assimétricas — frutos de uma manhã de inspiração e autocuidado no Vale das Estações. Sem falar que os demais escolhidos estariam rivalizando com a comadre Florzinha em matéria de cabelos.

Saí do banheiro recolocando o anel enquanto idealizava alguma roupa composta, descrente de que ele fosse capaz de criar algo assim. Para meu espanto, objeto me presenteou com um par de calças cinzentas e uma blusa de botões e manga longa branca, leve e confortável o suficiente para que eu me sentisse adequada ao estilo de vestimenta da tripulação.

Depois do que houve no invólucro, considerei não utilizar o presente para determinar minhas roupas. Porém, eu não tinha mais o que vestir em canto algum e o anel foi me dado por alguém especial. Alguém que acreditava na liberdade e que amava roupas. Fui atingida por uma dor fina ao lembrar da felicidade de Laya quando me preparou para o culto aos cristais. Ela nunca mais sorriria. Nunca mais diria como o caimento do traje de dormir em mim era horripilante. E metade disso era culpa dos meltas, mas outra, bem maior, não.

A sensação do navio chacoalhando de maneira mais abrupta que o habitual direita-esquerda, me fez entender que precisava controlar os pensamentos. Encostei a porta da cabine e me encaminhei para o convés, esquivando-me de mais devaneios.

Ventos do Outono - Livro 2Onde histórias criam vida. Descubra agora