28. Abismo - Heitor

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Eu não precisava estar dentro da cabeça teimosa de Briseis para saber que ela se culpava pela presença do krenger em Hanaros. Por isso, me obriguei a vestir minha melhor cara de paisagem enquanto observava ela conjurar as sombras e direcioná-las para o krenger, logo após o monstrengo acabar com a vida da Sentinela de uma vez por todas.

Estávamos no pavimento superior momentos antes, assistindo impacientes enquanto duas criaturas gigantes travavam um embate lendário. Kong versus Godzilla era uma lutinha de formigas perto daquilo!  Então o krenger enfiou as garras no pescoço da Sentinela, tingindo de vermelho centenas de metros cúbicos de água. Ele estava prestes a devorar a cabeça do oponente em uma só mordida quando Briseis levantou e gritou:

— Já chega!

E então estava acabado. Não havia mais monstro algum para nos preocupar.

Quando a magia voltou, senti os cortes em minhas pernas sumindo progressivamente. Ativei o detector de auras que não identificou qualquer presença próxima. Mas não me preocupei em saber onde Sjin ou Karen estavam. Tinha visto elas alcançarem o caminho até o invólucro enquanto o krenger era atraído para a casa da sentinela.

Estávamos sozinhos, por ora.

Olhei para Briseis, esperando que o guarda-roupa mágico dela trocasse as roupas para algo menos combativo que a armadura. Algo que me permitisse ver mais da sua pele. Afinal, só porque estávamos correndo risco de vida pela centésima vez na semana, não significava que eu pudesse ignorar meus pensamentos criativos.

Porém, ela permaneceu envolvida pelo aço, as partes onde o metal havia sido perdido na água retomadas instantaneamente e cobrindo o pouco que eu ainda conseguia ver.

— Está tudo bem — segurei seu ombro, fazendo com que olhasse para mim. — Você conseguiu...

Vilãzinha.

A brincadeira pinicou em meus lábios mas me contive quando notei as lágrimas que inundavam seus olhos.

— O que exatamente eu consegui? Ser ainda pior que essas duas coisas? — balançou a cabeça, inconformada. — Viu a facilidade com que destruí o krenger? A cor dos poderes que saíram dos meus dedos? Eu sou apenas sombras, Heitor.

Tomei seu rosto em minhas mãos como costumava fazer quando queria nos acalmar. Ambos. Tocar nela me trazia uma serenidade indescritível.

— Isso não é verdade — murmurei. — Mas se as sombras fazem mesmo parte de quem você é, elas não existem sozinhas.

Deslizei suavemente o polegar em sua bochecha, sentindo a maciez da pele. Era parte do meu ritual. Ela fechou os olhos. Sua expressão me lembrava a primeira vez que nos beijamos e uma onda de desejo me atingiu. Porém, me contive.

— E isso não é um ponto negativo — me obriguei a continuar. — Você é a coisa mais linda e corajosa que já vi, em qualquer dos mundos.

Quando Briseis me encarou fiquei ainda mais convencido do que dizia. Seus olhos negros pareciam capazes de iluminar todo o pântano sombriluzente, criando um contraste maravilhoso com os pontos vermelhos que surgiam no topo de suas bochechas, bem onde a toquei.

—  É, acho que Merrick não estava mesmo mentindo — tratou de mudar de assunto e afastar minha mão, parecendo desconcertada. — Tenho o sangue dele, por isso sou imune.

Não me importei com o gelo. Já havia aprendido que aquela era a maneira estranha que ela encontrava para lidar com os sentimentos.

— E também por isso estamos vivos — recordei. — Lembre-me de agradecer da próxima vez que encontrá-lo.

Ventos do Outono - Livro 2Onde histórias criam vida. Descubra agora