24. Vitrais - Briseis

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Segure minha mão, Laya!  — gritei. — Eu vou te tirar daqui...

No meu sonho, Laya ainda estava viva. Eu conseguia vê-la a apenas alguns metros, correndo por uma campina em direção ao portal onde eu estava. Seus cabelos azuis flutuavam ao redor do rosto. Ela alisava o ventre proeminente, uma gigante e redonda barriga que a impedia de se mover com agilidade. Quando Laya finalmente me estendeu a mão eu a segurei com toda força que tinha, sentindo minhas unhas se cravarem na sua pele escorregadia.

Só mais um passo, Laya, só mais um passo  — implorei. — Estamos quase lá!

Percebi, tarde demais, que o que tornava sua pele escorregadia era sangue. Sangue que fluía da sua barriga para o chão em um fluxo nauseante.

Olhei para meus pés descalços, o líquido rubro encobrindo também cada centímetro de mim e fazendo minha pele ter uma repugnante textura grudenta. De alguma forma eu sabia que aquele sangue não pertencia a mim, mas a Laya.

E aos nixges que eu havia matado. 

Mentirosa! — Laya puxou a mão, dobrando-se sobre seu ventre. Seus olhos cinzentos, antes brilhantes, agora estavam opacos e carregados de medo. Os lábios finos e rosados tremiam enquanto ela falava: — Você é um monstro ainda mais odioso que Crino. Foi você quem trouxe os meltas até aqui e destruiu meu lar, exterminou o meu povo.

Minha cabeça girou, como se alguém tivesse dado um golpe forte na minha nuca. Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo.

Laya, não — Meu coração se apertou, sentindo como se uma corda estivesse sendo puxada com força. — Laya... — murmurei em agonia, notando o portal se fechar ao meu redor.

Eu escolheria morrer mil vezes mais antes de aceitar seguir uma melta!

Assisti paralisada enquanto a pugnaz sacava uma adaga de dentro das próprias entranhas e a passava pelo pescoço, lentamente, de um extremo ao outro.

Eu me pus a gritar por ajuda, por piedade, por Laya, mas nada adiantou.

Quando acordei, meu corpo inteiro tremia. Cada pequena parte do terrível pesadelo era estranhamente vívida em minha mente. Só tomei consciência de que não estava mais nele quando notei os braços fortes que enlaçavam minha cintura e me puxavam contra uma superfície firme e macia que, àquela altura, já era bem conhecida por mim. Ao inspirar um perfume agradável e familiar, senti toda tensão ser amenizada.

A maneira como o corpo de Heitor estava colado ao meu me trazia a consciência de que ainda estava sobre a cama pequena num dos muitos quartos da fortaleza de obsidiana.

Antes de dormir eu e o imperador tivemos uma grande discussão sobre qual quarto — sendo as opções um diminuto e outro empoeirado — cada um de nós ficaria. A exigência dele era a de que, se não fosse o mesmo cômodo, os dormitórios deveriam ser contíguos. Tentei ignorar a parte de mim que se perguntava qual o intuito dele: ficar próximo ou me vigiar? Não poderia dizer que ficaria insultada se a segunda hipótese fosse a real, já que eu sabia as coisas bizarras que me aconteciam, especialmente durante a noite.

Quando achamos os dois quartos, lado a lado, numa das torres mais ao leste da fortaleza, Heitor insistira para que eu ficasse no aposento com uma grande e escura cama, oferecendo-se para dormir no chão ao meu lado. Claro, eu recusei. Ficar no outro cômodo, numa cama tão apertada que mal me cabia, diminuiria as chances de acabar com o imperador ao meu lado no final da noite. Eu tinha esperanças de que o espaço minúsculo o faria hesitar em tentar deitar comigo quando os pesadelos viessem.

Como sempre, eu subestimava sua perseverança.

— Esse foi bem ruim — Heitor murmurou contra meus cabelos, o aperto em minha cintura se afrouxando conforme minha frequência respiratória diminuía a uma velocidade gradativa.

Ventos do Outono - Livro 2Onde histórias criam vida. Descubra agora