14. Marcas - Briseis

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Após a saída de Muriel um clima denso pairou sobre a clareira. Ainda que não fosse nosso intuito, participar e ganhar a prova de honra havia acendido uma complexa trama política no seio do povoado matruaky.

De um lado, estavam os pugnazes que seguiriam Sjin independente de quem fôssemos. Aqueles que já possuíam a lealdade bem estabelecida antes mesmo de nossa chegada. Do outro, os seguidores de Crino, ardilosos e odiosos, contrários a Sjin também independente de qualquer coisa. E bem no meio estavam os habitantes que tendiam suas crenças àquilo que parecia mais real e condizente com o desejo dos Grandes.

A balança inquestionavelmente pendia a favor de Sjin, porém, sua vantagem não parecia algo muito sólido. Os hanarianos ainda possuíam dúvidas, e eu era capaz de entendê-los cada vez mais. Bem ou mal não aparentava ser o norte que definia as forças que duelavam pelo controle das dimensões e sim algo além...

— Agradeço pelo apoio, Laya, mas creio que você tenha se enganado em alguns pontos... — A voz irritada de Karen se destacou entre o burburinho dos matruakys que se dispersavam, retornando à celebração do que ainda restava no culto aos cristais.

— Sim, imperatriz, sei bem quem cada um de vocês é. Perdão se me debrucei em afastá-los dos questionamentos feitos pelos abutres de Crino ao invés de apenas declamar os papéis da profecia.

— Sabe, acho que te entendo — Karen estalou a língua, devolvendo o tom ácido à outra.— Se estivesse apaixonada por um integrante da missão, ainda que um ser tão miserável quanto Daniel, também me esforçaria para ignorar nossas atribuições.

Eu conseguia sentir o veneno em cada uma daquelas palavras.

A pugnaz segurou o olhar de Karen, franzindo o cenho. Eu podia vê-la planejando uma resposta à altura e sabia que ela possuía todo o material necessário para fazer aquilo. Por um instante tive medo que Laya expusesse meu encontro com o imperador no lago mais cedo, mas um gemido de dor interrompeu a discussão.

Olhei para Heitor, vendo-o arfar com a mão espalmada sobre o peito. O tecido sujo de sangue deixava uma cicatriz exposta no meio da sua caixa torácica, mas não parecia uma ferida aberta.

— O que está acontecendo?

Me aproximei dele com os dedos estendidos para tocar-lhe. Estava com medo de que, subitamente, a magia que ajudou Heitor estivesse retrocedendo. Eu não ficaria tão surpresa, coisas estranhas aconteciam o tempo todo apenas para me manter em uma espiral crescente de sofrimento.

— Foi apenas uma fisgada — Ele se afastou. — Acho que ainda não estou totalmente curado, mas não chega a ser nada grave. Vou sobreviver. Deveria estar se preocupando consigo mesma, afinal, também foi ferida, certo?

Ele me encarou e enxerguei as inúmeras perguntas em seu rosto.

— Claro que não está totalmente curado! Você praticamente morreu, Heitor.

A imperatriz me lançou um olhar de reprovação.

— Está feliz agora?

— O que...

— Tem ideia do que fez?  — Ela pressionou. — Heitor sabia ser você e não te atacou. Ele tentou te parar e quase o matou! Você poderia ter atravessado ele com a espada...

Poderia ter atravessado? Eu enfiei uma espada no peito do imperador, como ela não tinha visto?

— Karen — Sjin saiu de seu estado de perplexidade após o desconforto com Muriel —, o imperador está bem. Briseis conseguiu parar. Já passou.

Pensei em dizer que eles estavam enganados, eu não fui forte como Heitor. Não consegui identificá-lo. Entretanto, as palavras de Sjin e Karen só podiam significar que os cristais danificados tinham alterado para o público o final verdadeiro do desafio. Ninguém me viu usando meus os meltas ou roubando a magia do imperador. Por isso estavam me apontando como honrada e não aberração.

Ventos do Outono - Livro 2Onde histórias criam vida. Descubra agora