22. Peso - Briseis

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Se eu perguntasse à pequena Briseis, de dez anos antes, como ela se veria no futuro, apostaria que assassina, vilã, órfã e transgressora seriam, sem dúvidas, as opções mais improváveis.

Mas, ali estava eu. E quanto à pequena Briseis... havia se perdido nas complexas e inúmeras camadas de quem eu me tornara.

Gostaria de dizer que depois da saída de Heitor me revirara na cama tantas vezes, remoendo minha culpa e dor por ter dizimado os pugnazes, que sequer conseguira relaxar.

Mas então eu estaria mentindo.

Pois, pela primeira vez, as mortes provocadas por mim não pesavam.

Me movi sobre a cama, buscando enviar os pensamentos para longe e grunhi ao me dar conta do fino e confortável tecido do traje matruaky se agarrando à minha pele, assim como os lençóis ao redor de mim. O odor de sangue seco e suor impregnava minhas narinas.

Não me admirava em nada o imperador não ter aceitado continuar deitado comigo.

Lutei para ignorar a parte da minha mente que levantava a possibilidade de que, na verdade, o provável quarto dos reis de Hanaros do Sul — os pais do garoto — não se constituir como o lugar mais adequado para ficarmos juntos. Porque de fato não era.

Evitei encarar os móveis antigos e o pequeno berço flutuante enquanto levantava sob a luz que as lamparinas acesas lançavam na parede. Avistei uma gigante e pesada porta feita de material sólido que moveu-se sozinha quando me aproximei. Enquanto passava pela soleira, me vi torcendo para que aquilo fosse uma suíte. Eu não conseguiria descansar impregnada de suor e não poderia ser julgada por esperar que os nixges tivessem banheiros nos quartos como os humanos.

A boa notícia era que, de fato, os nixges tinham suítes. A má notícia era que eu não sabia se aquilo poderia ser considerado como um banheiro.

Parecia mais uma grande caverna subterrânea termal, com paredes de pedra e o ar condensando-se em pequenas espirais na superfície de um lago fumegante. Rochas irregulares se projetavam da água, brilhando com tons de verde-limo. Eu sentia o vapor que escapava da água borbulhante e tocava meu rosto.  O buraco cercado por pedras polidas, como um gigante caldeirão, fazia o lago do povoado-entre-cordilheiras parecer a banheira de um bebê.

Pequenos comichões se espalharam por toda a minha pele quando dei um passo para trás. Era como se a água quente chamasse, não, clamasse por mim.

Engoli em seco. Antes a visão me causaria tanto medo que eu cairia tremendo sobre meus próprios joelhos. Porém, naquele instante tudo o que eu sentia era um arrepio. Claro, não um arrepio de terror, mas de fascinação e uma pontada de lembrança.

Eu nunca iria me acostumar à forma magnífica como até as pequenas coisas eram rodeadas por magia em Hanaros. Digo, o que era para ser uma suíte simples num quarto de casal se mostrava como uma gigantesca fonte termal, praticamente impossível de ser concebida pela engenharia humana.

Temi que fosse uma espécie de jardim de inverno estranho, porém, me convenci de que aquele lugar era, de fato, algo como um banheiro naturalista. Pois, numa das paredes de pedra havia uma moldura de água corrente, compondo um gigante e lindo espelho. Resolvi não me ater ao correspondente a vaso sanitário, não era esse tipo de lembrança que você guardava quando estava em um castelo mágico.

Retirei o traje imundo e as botas gastas, mergulhando um dos pés na água borbulhante após me despir. A tensão presente nos meus músculos foi progressivamente dissolvida conforme afundava na água rasa da lagoa termal. O líquido quente não causava qualquer incômodo, limpando rapidamente todas as impurezas que minha pele trazia desde o povoado matruaky.

Ventos do Outono - Livro 2Onde histórias criam vida. Descubra agora