Corte de Sombras e Cicatrizes

Capítulo 20

Dyami 

Precário era como o acampamento se encontrava. Após imporem suas condições e termos, a situação das fêmeas guerreiras foi todo pequeno vilarejo de batalha virando as costas para elas. Com a comida cada vez mais escassa algumas das fêmeas escolheram voltar para seus vilarejos e casas. Voltar para moradia dentro do acampamento illyriano era o mais perigoso, poucas tinha coragem de andar dentro dele, quem dirá voltar a conviver com eles. 

Dyami era uma das que andava por eles, recebendo olhares letais que carregavam uma ameaça de morte silenciosa. Era estranho aquilo como ainda culminavam diferença e ódio pela mera existência das fêmeas. Sem fundamento, unicamente para manter seus egos frágeis apoiados em uma ideia de poder e domínio. Nem sempre foi assim e ela era uma das que sabia muito bem disso. Agora sentiam sua ideia estúpida de poder ameaçada, e isso os deixava em fúria e elas em perigo.

Os olhares queimavam sobre ela a cada passo que dava, desarmada - uma das condições que elas tinham de seguir para poder adentrar - mas com a cabeça erguida, não se deixaria abalar. Seus longos e altos cachos castanhos estavam soltos e bem definidos, trazendo ainda mais a sensação de poder. A luz de fim de tarde, um pôr de sol especificamente intenso naquele dia, deixou sua pele negra mais reluzente. Não os permitirá saber que estava as afetando. 

Respirou fundo e seguiu andando até sua casa, até sua avó, a última pessoa de sua família que lhe restara.

Moravam mais ao norte do acampamento, no limite, afastadas de todas as intrigas que pudessem ter com os machos. Também fazia parte do acordo. Uma pequena casa, como um chalé, dois andares e de madeira. Era aconchegante e familiar, mas para Dyami não era seu lar, não conseguiria chamar qualquer casa naquele lugar de lar. 

A pouco menos de trinta anos haviam se mudado, para ela uma novidade já para seus pais e avó apenas uma volta. Após a morte de sua mãe, moravam em um pequeno vilarejo ao leste da Corte Noturna, não eram exatamente felizes, mas viviam em paz. Queimada em uma fogueira. Dyami ainda conseguia ouvir os gritos de sua mãe enquanto o crepitar da madeira doía em seus ossos. Se entregou em troca da segurança deles, e tentou até seu último fôlego resistir aos gritos para não os dar essa pontinha de prazer. No outro dia era apenas ela e sua avó, uma illyriana de 2000 anos de idade, foram acolhidas - no mais longe significado da palavra - no acampamento, e ali moraram desde então. Nunca soube se a estadia foi permitida por conta de sua avó ou por seu pai, um guerreiro illyriano que havia morrido lutando contra revoltosos, estes mesmos que se aliaram fácil a Amarantha na ascendência de seu governo.

Sentada olhando para o horizonte, muito teimosa, ela insistia em fazer tudo sozinha mesmo após o corpo debilitado por conta de seu passado. Dyami passou anos com suas memórias apagadas, não todas, apenas a parte sobre as histórias que sua avó lhe contou. Mas há cinco anos em uma epifania súbita durante o sono ela se lembrou. E como quis correr até sua última família e a abraçar com toda sua força e ao mesmo tempo extremo cuidado.

Não conseguia mais andar direito mas usava suas asas para ajudar em na estabilidade, mas não por causa da idade, de certa maneira para imortais ela era jovem. O que lhe aconteceu foi muito mais doloroso, quebrou inúmeros ossos. Contrastando com a pele negra, em seu rosto uma cicatriz cruzava de seu olho esquerdo até o colo de seu peito, o que lhe resultou em um olho cego completamente branco diferente de seu outro atento castanho amarelado. O cabelo branco acinzentado, desde de sua nascença, nas histórias de quando era jovem e guerreira eram longos com cachos tão definidos quanto os seus mas agora eram curtos e práticos. Apesar de todos anos que já estava longe de batalhas e algum treino Dyami ainda conseguia visualizar resquícios de músculos definidos em sua avó. 

Seu reflexo ainda era o mesmo, quando Dyami adentrou a sala esbarrando na mesa um copo caiu mas foi segurado por sua avó antes que chegasse perto do chão. Após um resmungo que trouxe nela um sorriso. Olhava para a lendária valkyria Keitha Thyell-Wys, uma das grandes guerreiras illyrianas que havia lutado na batalha final. Uma das poucas sobreviventes do que muitos acreditavam ser apenas lenda.