A Canção da Tartaruga

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Há duas coisas que se precisa saber sobre sangue mágico. A primeira é que ele é antigo, muito antigo, surgido antes da Cidade se reconstruir das ruínas, antes que as histórias começassem a passar de boca em boca. Ele vem de uma época em que ainda era chamado de Dom, e poucas pessoas o possuíam.

A segunda é que sangue mágico pode ser muito perigoso.

Magia pôde ser aprendida com o passar do tempo, disseminando os conhecimentos e acesso a ela, desconstruindo a ideia de que apenas aqueles com o Dom pudessem fazer feitiços e poções. Nem todos se dedicavam a ela, é claro, outros mais interessados em fazer pão, plantar, pescar, cantar, construir, ensinar. Mas agora, magia podia ser muito bem aprendida e executada, quase tão bem quanto alguém que possuía sangue mágico.

No entanto, ter sangue mágico indicava que fazer magia era, acima de tudo, fácil – natural. E é por isso que podia ser tão perigoso. Uma magia que se estabelecia em desejos, emoções, vontades: algo que nascia de algo tão inconstante quanto um ser humano, não podia, de forma alguma, não ser perigoso. Por isso, era preciso que aqueles com sangue mágico se policiassem e tomassem muito cuidado com todo o poder que existia dentro deles.

Pelo menos, isso era o que a mãe de Hoseok sempre lhe contava, quando passavam a noite deitados lado a lado na cama, à luz de velas no pequeno quarto que compartilhavam acima do estabelecimento onde ela trabalhava. A mãe lhe contava essas histórias porque era uma descendente da Família, e portanto, Hoseok também o era.

A Família eram aqueles que ainda possuíam, mesmo nos tempos de hoje, resquícios de sangue mágico correndo em suas veias.

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Dessa forma, Hoseok cresceu interessado em magia, mas ao mesmo tempo temeroso dela. Se podia criar feitiços e fazer magia tão facilmente quanto sentia dor, tristeza ou raiva, tinha que se manter em cheque o tempo todo para não prejudicar ninguém.

Não que houvesse muito sangue mágico em sua veia. Sua mãe já era uma descendente distante, e ele mesmo não tinha tanto poder assim. Foi aperfeiçoando-se com o passar do tempo, por se interessar na área, e se tornou um bom mago da Cidade, buscando sempre ajudar os outros. Sua mãe, uma quieta e esperta maga caseira, vendia feitiços simples e receitas, principalmente pães assados em fornadas repletas de boa sorte, felicidade ou companheirismo, que quando repartidos à mesa, exalando o vapor quente de uma boa refeição que se seguiria, espalhavam esses sentimentos a todos que comiam.

Hoseok aproveitava seu período de aprendizado para explorar e realizar feitiços em diversas regiões. Sendo da Família, não tinha bem um clã definido, e não se importava muito com tais separações e designações. Gostava de magia, de toda ela, então se empenhava em descobrir mais sobre todos os tipos praticados. Já tinha praticamente estudado tudo sobre a Cidade, se aventurado um pouco pelo Bosque, e fizera um retiro nas Montanhas.

Agora, o jovem mago queria conhecer o Mar.

Sabia que era uma longa jornada, e que tinha que atravessar as Montanhas para chegar lá. Poucos viajantes chegavam de lá, a maioria sendo comerciantes ou pescadores, pouco sabedores de magia para que lhe ensinassem ali mesmo. Teria que ir até lá, provavelmente enfrentando a árdua travessia.

No entanto, um dia em que comprava ingredientes para sua mãe no Mercado da Cidade, ouviu no fundo do vozerio um pescador se gabar que seus peixes eram os mais frescos, vindos direto do Mar, por conta de um segredo. Curioso, o rapaz foi até lá.

— Bom dia, jovem mestre! Que tal um linguado? Ou talvez um salmão? Esse polvo aqui é fresquíssimo, recém-pescado! — o homem, cujo rosto era bronzeado, com linhas fundas demarcadas por toda a extensão do mesmo, uma barba grisalha que mal cobria o queixo e a mandíbula, sorriu largamente em sua direção. Hoseok observou que lhe faltava um dente.

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