Vinte e três

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Dizem que todo ser humano recebe uma missão diferente ao desembarcar aqui na Terra. Uma missão para ser cumprida, espera-se. Caso contrário, que sentido teria?

Era exatamente nisso que eu pensava quando afastei duas lâminas da persiana recém-fechada e, através do buraquinho, voltei a espiar a rua, jogando para o alto a missão a mim confiada, em ocasião do meu nascimento: deixar de ser uma garota covarde, medrosa e indecisa. Embora eu jamais tivesse aceitado a real sacanagem de soltarem uma garota covarde, medrosa e indecisa nesta arena de leões que é este mundo, onde aparentemente só quem é forte, valente e bem resolvido é capaz de sobreviver.

Fiquei observando Lauren jogar no ataque, enquanto prometia a mim mesma "só mais um minuto". E no minuto seguinte, "só mais um minuto".

E assim se foram horas.

O sol se preparava para dar adeus ao domingo. Na grama, as sombras dos jogadores corriam disformes. Uma, em especial, destoava-se do conjunto veloz, e assim como as demais, interrompia seu movimento a intervalos regulares para um descanso.

Num desses intervalos, tive o desprazer
de ver meu pai atravessar a rua e se aproximar do grupo com pacotes de biscoitos salgados, broa de fubá e garrafas de café e água. Enquanto as crianças comiam e bebiam, papai conversava com Lauren, um papo entusiasmado, os dois gesticulando e rindo como grandes amigos. Fiquei me perguntando se falavam de mim.

Os jogadores voltaram a se espalhar pelo campo, sem poupar a energia revigorada. Lauren, claro, no meio deles, depois de ter abaixado a cabeça e jogado um pouco de água na nuca. Papai lançou a bola e ficou lá, assistindo à partida de uma posição privilegiada, sentado no tamborete que Joana levara para ele.
(Quem tinha ficado na loja naquele meio minuto de irresponsabilidade?)

Quanto a mim, estava com dores nas costas e com os dedos dormentes de tanto manter abertas as lâminas da persiana.
As nuvens esparsas, de brancas, ficaram rosadas, depois alaranjadas, acinzentadas e por fim. As luzes da rua de repente se acenderam e o clima começou a mudar. A noite caiu. Do outro lado do vidro trepidante da janela, o vento fustigava as árvores, varria em redemoinhos as folhas caídas. Era um vento frio, desses de surpreender as pessoas, que agora andavam a passos largos na calçada, encolhidas com a falta de casacos, Molhada de suor, Lauren desamarrou a bicicleta do poste. Começou a enrolar a camisa na bicicleta. Então parou, com ares de indecisão. Veste a camisa, sua idiota, ou vai pegar um resfriado! Veste a camisa! Veste a camisa!

Resolveu finalmente. Vestiu a camisa manchada da ferrugem da bicicleta, secou o suor dos olhos e partiu. Lauren desapareceu pedalando pela esquina, depois de resistir por sete horas, depois de ter buscado o meu olhar na janela nas inúmeras vezes em que marcou um gol.

Uma busca inútil, visto que, mesmo supostamente invisível atrás da persiana fechada, eu me agachava depressa, escondendo-me sob o parapeito, só para garantir. Em algumas vezes, porém, tive tempo para um rápido vislumbre da bola sacudindo a rede enquanto lauren, de braço esticado, apontava o indicador na minha direção, dedicando-me o gol; os jogadores aliados pulando felizes ao seu redor.

"O jantar está na mesa." Da porta do quarto, papai me chamou.

"Já estou indo." Encontrei Joana sentada à mesa, constrangida, como se papai tivesse exigido sua presença ali.

"Oi, Camila." Lançou-me um olhar acanhado e abaixou a cabeça.

Então me sentei de frente para ela e comecei o discurso de retratação. Papai serviu nossos pratos com macarrão ao alho e óleo enquanto eu tagarelava sem parar.

"Eu entendo, querida" disse Joana, os olhos sinceros. "Não se preocupe. Nós também temos culpa. Está tudo bem."
Ela afagou minha mão por cima da mesa.

Azar o seu! CamrenOnde histórias criam vida. Descubra agora