Vinte e quatro

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Chorei, chorei, chorei. Chorei tanto que o mundo pareceu derreter. Tudo ficou nebuloso e distante, a ponto de eu levar um susto com uma batida na porta. Virei um pouco o rosto e me deparei com um par de botas invadindo o meu espaço. Uma figura sem corpo.

"Precisando de ajuda?"

"Não, obrigada" respondi, fungando nas mangas do terninho.

Quando, enfim, parei de chorar, tirei o celular da mochila. Atende, atende, atende.

"E aí, mocinha? Feliz com o novo emprego?"

"Preciso de você, Austin."

"Vamos celebrar?"

"Celebrar?" Quase gritei. "Celebrar o quê?"

"Ei, ei, o que aconteceu?"

"O que aconteceu é que preciso provar que não tive culpa e você vai me ajudar."

"Calma, calma..."

"Eu vou morrer de fome!" eu disse, sem calma nenhuma. "Ninguém em sã consciência vai empregar uma pessoa que foi demitida por justa causa. As notícias correm rápido, como você mesmo falou!"

"Sim, mas ele ficou interessado nas suas qualificações..."

"Mas ele não é normal! Ele é doente! E me acusou de assediar meu estagiário."

"Espera aí" disse ele. "Ele sabia o motivo da justa causa? Como?"

" Não interessa. O caso é que eu não
assediei ninguém e preciso pensar num jeito de desmascará-la. Eu sei que foi ela, Austin. A Fernanda. Aquela vaca. Foi ela que armou contra mim. Você precisa encontrar as provas lá na FB Logística. As provas que ela usou. Eu quero ver as provas!" Graças a Deus Austin conhecia Fernanda, conhecia a turma toda. Graças a Deus Glorinha havia me dado o cartão dele. Graças a Deus Austin era o único headhunter que não cobrava adiantamento e, por isso mesmo, eu o contratei. Graças a Deus.

"Certo" disse ele. "Vou entrar em contato com a Maria da Glória e ver o que ela consegue para mim. Mas temos um problema..."

"Outro?" gargalhei. "Não me diga!"

"Você sabe, a Maria da Glória..."

"O que é que tem?"

"Anda muito chateada com você"
disse ele. "Sobre uma tela impressionista que você arrematou num leilão e até hoje não pagou. Você sabe como ela é ligada à arte e como essas coisas custam caro. Pincéis, tintas, a sensibilidade do artista em sua forma mais pura..."

"Tudo bem" falei. "Resolvo isso amanhã."
Peguei o primeiro Trem de volta, a viagem mais longa que fiz na vida.
"Espero que não morra de fome." "Espero que não morra de fome." "Espero que não morra de fome."

Na impossibilidade de ficar invisível ou passar despercebida, entrei na floricultura pela porta da frente. Papai largou a tesoura na prateleira das camélias e veio ao meu encontro.

"voltou cedo?"

"Não consegui, pai" adiantei o anúncio, para me livrar logo. "Não consegui o emprego. E decidi seguir seu conselho. Vou vender os meus móveis."

"Faz bem."

"Toda a parafernália que trouxe e que está lá em cima no terraço. Você me ajuda?"

"Claro, filha." Morna e reconfortante, a mão de papai pousou no meu ombro. "Claro que ajudo. Um anúncio, uns cartazes na porta da loja, na padaria, quem sabe." Fez uma pausa. "Mas antes... acho bom você subir até o seu quarto."

"É tudo que mais quero fazer."

Arrastei-me escada acima, levando comigo toda a tristeza de repente alojada
nos meus pés de chumbo. Larguei a mochila na cozinha. Puxei a toalha do varal e segui direto para o chuveiro. Mais um minuto daquele fedor de cigarro e eu iria vomitar. Impregnava minhas roupas, meu cabelo, minha pele, meus pensamentos. "Espero que não morra de fome." "Espero que não morra de fome."

Azar o seu! CamrenOnde histórias criam vida. Descubra agora