Dezoito

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Eu não sei dizer por quantos minutos fiquei examinando o rosto dela, tentando desesperadamente processar a verdade. Eu sentia algo crescendo interiormente, mas não conseguia dar nome àquela coisa recém-parida dentro de mim. Algo violento e contraditório. Algo que se avolumava à medida que eu ia me embriagando das lembranças que de repente se sucediam na minha mente, fora da ordem cronológica. Durante dez anos, eu havia saboreado as mesmas recordações. No escuro do quarto, na fila do mercado, no trânsito engarrafado, no café do escritório. Durante dez anos, tudo o que fiz foi me sentir uma idiota por simplesmente não conseguir esquecer. E agora era obrigada a reviver as mesmas lembranças de maneira avassaladora, diante da personagem principal, sem ter tido a chance de me preparar pra isso, eu não estava preparada. Mas ela estava ali. A minha Lauren estava bem ali, atrás daquele rosto novo, daqueles olhos tão íntimos que me fitavam, num silêncio apreensivo era a mesma Lauren que havia me telefonado, na madrugada do show do the 1975 em que não pude ir porque os organizadores achavam que eu não tinha idade ainda.

Ela disse "Escuta essa" e deixou o celular ligado para que eu, chorando baixinho, embolada nos cobertores, pudesse ouvir heart out.

It's just you and I, tonight Why don't you figure my heart out? It's just you and I, tonight Why don't you figure my heart out

A mesma Lauren que, na noite do pijama em que perdi o sono, encontrei deitada no sofá da sala lendo sob a luz do abajur. Lembro que fiquei muito quieta e me arrastei para o sofá da frente quando, sem qualquer explicação, ela passou a ler o livro em voz alta...

A mesma Lauren que um dia se sentou no vão entre o tanque e a máquina de lavar, onde eu me escondi numa tarde de tempestade, e dividiu comigo um dos fones de seu Discman tocando I Will em modo repetição. Ela só relaxou quando voltei a respirar normalmente. Então se esparramou no espaço apertado, provocando-me arrepios ao encostar um lado inteiro do seu corpo no meu... A mesma lauren que se desembestou a correr ao lado do ônibus que me levava de volta pra casa acenando e gritando sob a minha janela, até perder o fôlego e sumir de vista, cansada e apoiando as mãos no joelho... A mesma Lauren que ia lá para casa estudar para as provas de percepção musical, foi ela que me ensinou a pescar; a assobiar usando os dedos; a andar de bicicleta, no campus da universidade, e depois me levou até o topo de uma elevação gramada e me surpreendeu com os braços na minha cintura, fazendo-me cair e rolar junto com ela ladeira abaixo. E no momento em que o sol derramava raios oblíquos, nós duas nos agachamos contra a luz e erguemos os braços, lançando sombras na grama verdinha. Seus dedos se emaranharam numa tentativa frustrada de reproduzir a um pássaro, e eu comecei a rir. Porque era simples rir com ela.

A mesma Lauren que me mostrou o céu ao beijar a minha boca e o inferno ao partir para a Londres. Eu chorei noites inteiras. Porque também era simples chorar por ela. Ela era a Lauren que jamais me ligou de Londres ou mandou uma carta. Ela era a Lauren que um dia se esqueceu de mim .Agora eu não conseguia chorar. Não conseguia abrir a boca. Lutava para continuar respirando, longe de compreender a magnitude daquele acaso, daquela coisa estranha no meu peito, de distinguir o que era raiva, o que era vergonha e o que era contentamento. Avaliar qual emoção era mais forte.

Eu devia estar parecendo uma morta de olhos abertos. Talvez estivesse morrendo por dentro também. Só que antes que eu pudesse fechar os olhos e desmaiar, Lauren pegou meu rosto entre as mãos. E começou a falar...

"Ah, camz... Eu sinto tanto, tanto..." Soltou um suspiro pesado. "Sinto por não ter sido totalmente franca. Por ter escapado pelas beiradas, consciente do que estava fazendo. Sinto pelo que você está sentindo agora. Mas infelizmente os acontecimentos não colaboraram. Começaram mal e só foram piorando." Ela fez uma pausa para me observar, provavelmente para verificar se ainda havia alma naquele corpo entorpecido.
engoliu em seco e continuou "Você começou a dizer aquelas coisas na hora do tiroteio...Sobre mim, sobre o meu beijo, sobre... a explosão sexual do prazer." Ai, não. Ai, não. Ai, não... "Eu juro, nem me passou pela cabeça que você pudesse estar tão fora de si a ponto de depois esquecer o que tinha acabado de confessar."

Azar o seu! CamrenOnde histórias criam vida. Descubra agora