Nunca tinha ido para lá. Nem nos tempos da faculdade, ainda que eu não fosse adepta às ervas proibidas que meus colegas diziam fumar naquela região de relevo acidentado e trilhas embrenhadas na mata. tivemos de percorrer mais de vinte quilômetros de uma precária estrada quase totalmente de Subir, subir e subir. Era morro que não acabava mais! Ainda bem que podíamos contar com o Land Rover Defender, toda sua tração e potência; a garantia de um final feliz em roteiros imprevistos. Uma chuva brava, por exemplo, poderia até complicar, mas dificilmente impedir nossa chegada.Um alívio, pensei comigo mesma; sempre morri de medo de trovões, relâmpagos e raios (ah, sim, já falei isso). Mesmo que, no interior do carro, a sensação fosse a de que eu tinha sido jogada dentro de uma coqueteleira, de tanto que o carro chacoalhava. Em parte por culpa da gata. Cruz credo! Vou te contar! Para que tanta pressa? Era para me impressionar, por acaso? E de que maneira isso podia ser impressionante se eu tinha que me agarrar a qualquer coisa sólida que encontrasse pela frente quando a carcaça parecia se soltar das molas e pular cinco metros acima dos buracos?Ah, certo, tudo bem. Na hora em que agarrei o joelho dela (tudo muito despretensioso e ingênuo) até que foi emocionante.
"Ei!" reclamou, olhando-me de esguelha. "Meu joelho está tão firme quanto o seu!"
"Desculpa" a tireimão imediatamente." É que... é que..."
"Sem problema." Ela sorriu e afundou o pé no acelerador como se estivesse perdendo a liderança de um rally. "Se a situação piorar pode me agarrar. Eu não ligo." Fiquei calada, mal podendo acreditar. Não dava para acreditar. Nem nela, nem na circunstância.
Em asfalto firme, cheguei a me esgueirar pelo teto solar. Ela me incentivou, diminuindo a velocidade (pelo menos nessa hora, ela diminuiu). Abri os braços e deixei o vento beijar meu corpo, meu rosto, levantar meu cabelo. "U-hu", até gritei. Ela se divertiu com aquilo. Mais do que eu, aliás. Depois, quando meu traseiro voltou a ocupar o banco do carona
"Adoro você, camila" fazendo meu estômago dar cambalhotas ainda mais perigosas do que as curvas da estrada.
Agora, no entanto, se eu enfiasse minha cabeça pelo teto solar, correria o risco de tê-la arrancada do resto do corpo. E comeria poeira.Conforme avançávamos na estrada esburacada, sempre subindo, sempre sacudindo, o frio aumentava, embora o nevoeiro tivesse dado lugar a um céu muito limpo. Um céu azul de outono. Quando finalmente estacionamos na primeira ruela de pedregulhos, aproveitei para me agasalhar com mais um suéter de lã sob o casaco. Fechei o zíper, ajeitei o cabelo e fiquei esperando, observando ela vestir uma blusa de moletom cinza- chumbo (estampada com a palavra "London") por cima da blusa preta. Eu a acompanhei até a mercearia
A mercearia parecia esquecida no tempo e no espaço, como quase tudo naquele lugar, diga-se de passagem. Na verdade, a mercearia mais parecia a casa da mulher que estava empalhada numa cadeira de balanço atrás do balcão. Ela hesitou por um momento antes de tocar a sineta pendurada na soleira da porta. A badalada causou um sobressalto na mulher, que aprumou o corpo imenso, como uma mãe de santo incorporando um espírito.
"Camz sabe o que é um lobo-guará, não sabe? Vira e mexe aparece um por aqui. Especialmente ao entardecer, mais para a noite."
" Lo..." Minha voz falhou. "Lobo- guará?"
"Lobo é só no nome. Porque ele parece mais uma raposa. Ou um cachorro." E dizendo isso, deu de ombros, como se achasse normal comparar um lobo assassino a um... poodle, por exemplo, a raça do Tipinho, meu falecidoanimalzinho de estimação. "Não como um poodle se é nisso que está pensando." Oh! Como ela sabia? Continuou "Os lobos-guarás têm pernas finas e longas. São grandinhos até." A mão dela, parada no ar, indicou a altura até o chão. Oitenta centímetros, calculei. "Eu estava nesse mesmo Land Rover quando cruzei com um deles no meio da estrada, lá pros lados da fazenda do meu pai. Mas, até onde sei, eles preferem esses lados de cá."
O espelho redondo atrás da mulher mais redonda ainda confirmou o que eu já sabia eu estava da cor da parede. Branca. Supondo, claro, que aquela parede tivesse sido branca algum dia, talvez.
"Mas não se preocupe, Bronquinha. É um bicho meio cagão."A mulher soltou uma gargalhada espalhafatosa.
"Ah, que isso..." discordou. quinze minutos depois, quando reclamei do comportamento da mulher.
"Até que ela era simpática." Simpática? Ah, tá. Mas, aos olhos dela, de fato ela foi simpática a ponto de nos fazer sair de sua mercearia carregando um exagero de sacolas abarrotadas de iguarias locais. A mulher podia ser antiga. Muito antiga. Podia ter corrido dos tiranossauros, lançado a pedra fundamental de Machu Picchu, apertado a mão de Galileu Galilei, enlouquecido a Rainha Louca. Mas aceitava MasterCard. "Existem coisas que o dinheiro não compra."
A gata precisou de três viagens da mercearia até o Land Rover (que, pelo visto, não era alugado como supus a princípio). Numa delas, transportou um engradado com doze (doze!) tipos diferentes de cachaça. Na carroceria fechada,o soltou engradado sem delicadeza alguma, provocando aquele barulho de vidros se entrechocando. Depois limpou as mãos.
"Presente para o meu pai" esclareceu, quando arregalei os olhos. "Não que ele esteja merecendo." É claro que a mulher gargalhou, pensei, depois que guardamos todas as compras e retomamos nossos lugares no Land Rover.
Evidente que sim. Não era ela que, nesse momento, era levada para fazer um piquenique no meio de um deserto na mata nativa. Que ficaria isolada de tudo e de todos, e muito perto do lobo-guará, o lobo-cachorro, praticamente um pitbull. A trilha agora era impossivelmente mais estreita e esburacada. Por isso não deu para eu prestar muita atenção no caminho que fazíamos. Nos raros momentos em que eu entreabria os olhos, meio desorientada, tudo o que conseguia ver era poeira e mato, curva após curva. Então eu me sentia enjoada e fechava os olhos outra vez. Desejei ter enfiado na mochila uma cartela de comprimidos para enjoo junto com os anticoncepcionais. Mas eu não tinha imaginado que todos os enjoos, todo o desgaste ósseo, as possíveis vértebras quebradas, as futuras hérnias de disco e as espinhelas caídas, tudo isso valeria a pena. Tínhamos chegado a uma altitude inimaginável. E apesar dela ter dito que o lobo- guará tinha quase um metro, no instante em que saltei do carro, essa informação deixou de me apavorar. Cruzei as mãos atrás da cabeça e olhei em volta. De repente me dei conta de que, se resolvesse aparecer, o lobo-guará ia de fato parecer um poodle na imensidão do paraíso. E com um poodle eu não precisava me preocupar.
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Azar o seu! Camren
FanfictionCamila está parada num engarrafamento, pensando em sua vida azarada. Sem emprego, atolada em dívidas, ela não imagina que está prestes a viver a grande coincidência da sua vida. A motorista do carro ao lado está buzinando, tentando se comunicar com...