Nove

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"Acordou de mau humor?" Papai virou a folha do jornal. "A reflexão pós-velório durou menos do que imaginei." Não respondi. Em vez disso, revirei os olhos e me concentrei em cortar uma lasca maior do tablete de manteiga.

"Na verdade" ele continuou, agora cauteloso "eu ia sugerir o contrário. Por que não fica em casa e dorme mais um pouco? Ou sei lá... Vai dar uma caminhada no campus da universidade, depois passear no shopping. O dia está tão bonito. Joana chega cedo mesmo e..."

"Não." Cortei ele. Nesse momento, seus olhos deixaram o jornal e se fixaram no meu rosto. Duas bolas castanhas que mais pareciam dois canhões de raio laser.

"Camila" disse ele, numa voz preocupada "você precisa descansar, filha. Não adianta ser tão dura consigo mesma. Não adianta fingir que nada está acontecendo. Você tem o direito de estar chateada. Tem sido difícil para você." Difícil? E ele não sabia da missa um terço.

" Tempo livre não cura a chateação de ninguém." Mordi o biscoito. " Além do mais, se eu parar, eu penso. E pensar é sempre pior."

"Quem disse uma besteira dessas para você? Pensar nunca é pior. Pensar é a solução. E você precisa parar e pensar." Tá legal. Isso era novidade demais para as minhas teorias feministas, aperfeiçoadas por quase três décadas.Tudo bem que desabafar com A Gata tinha sido um alívio. Mas eu queria saber de onde foi que ela e papai tinham tirado essa ideia de que "Pensar é o caminho" ou "Você precisa se abrir com alguém".

Quer dizer, a menos que o mundo estivesse de pernas para o ar, eu não vivia num planeta onde seres humanos gostam de pensar ou desabafar ou discutir a respeito de qualquer tipo de problema, muito menos problema dos outros, vivia?

"Fala logo, pai. Aonde quer chegar com essa conversa?"

" Eu não ia tocar no assunto..." Hesitou por um instante. "Ainda mais depois da história do casamento da Dinah..."

" Eu estou feliz por ela. Vamos pular essa parte."

"Certo." Ele fechou o jornal e veio se sentar de frente para mim, na cadeira de madeira marfim que destoava das outras três ao redor da mesa, todas de alumínio. "Na sexta à tarde, ligaram para você. Eu não sabia direito..."

"Não, pai" interrompi. "Não precisa ficar preocupado se desligou o telefone sem saber quem era. Não era o Austin." Papai vivia especulando sobre meu headhunter.

"Sei que você está tão ansioso quanto eu, pai. Mas o Austin me ligaria no celular."

"Ligaram do banco." Então meu estômago desceu até o pé. Depois subiu de volta com toda força. O que era uma coisa bastante perigosa levando em conta que eu tinha ingerido um pedaço enorme de bolo, dez biscoitos de sal, três polvilhos e duas xícaras de café melado. E eram 8 horas da manhã. Ele chegara rápido demais. O monstro me abocanhara por trás.

"Ah, não..." murmurei entredentes, largando a banana descascada sobre a mesa. Espalmei as mãos ao lado da cabeça, encolhendo-me por dez segundos. Depois olhei para ele, pronta para mentir. "Pai, não se preocupe. É sério. Está tudo sob controle."

"Não foi o que pareceu." Ele ergueu as sobrancelhas como se acrescentasse: Sei que você deve 21 mil reais. "Filha, escute. Eu tenho umas economias, não é muita coisa, mas se você deixar..."

"Não, pai!" guinchei. "Por favor, não. Não piore as coisas para mim. Eu sou administradora e sei... administrar. Dívidas, inclusive."

"Então pelo menos me deixe pagar um salário a você, como funcionária da loja. É o justo, mila. Está na lei."

"Não" neguei de novo. "Já conversamos sobre isso. Não quero. Estou fazendo bico na floricultura para não ficar à toa. Fique tranquilo. Não vou processar você mais tarde." dei uma risada sem humor

Azar o seu! CamrenOnde histórias criam vida. Descubra agora