Ao Remetente

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A carta estava apoiada contra a fruteira de porcelana que eu tinha comprado numa lojinha de artefatos antigos, as cores contrastavam contra o bege quase amarronzado; eram formatos irregulares e entre elas tinham triângulos imperfeitos tingidos de amarelo, vermelho e preto.

Meu nome estava no mesmo canto, com a mesma letra cursiva me chamando para abri-la e desvendar o que estava ali dentro.

Eu já estava a horas com o queixo apoiado em cima das mãos, a porcelana escura já tinha aquecido debaixo dos meus dedos. Era inacreditável, eu talvez estivesse prestes a participar de uma cômica pegadinha da tv, não existia outra possibilidade.

Não tive tempo de processar a informação de ter ganhado algo jurídico, algo sem a presença de um advogado — que por acaso sumiu do mapa. A única coisa que eu conseguia pensar e que invadia minha mente, era o conteúdo daquela maldita carta.

Mesmo não entendendo o motivo real para que ele tirasse parte do tempo dele para escrever para alguém como eu, meu interior vibrava. Minha barriga tinha um exército de borboletas e minha cabeça girava em volta do que poderia estar escrito ali.

Minha curiosidade e receio batiam de frente, enquanto meus olhos percorriam a letra impecável que aquele homem tinha, meu interior se afundava de discussões internas. E neste exato momento, quem liderava essa incrível batalha, era a minha curiosidade.

Passei a unha na lateral do papel depois de desistir de encara-lo — na infeliz expectativa de que ele mostrasse por si mesmo de que se tratava. Tola. Como se isso fosse realmente acontecer.

Puxei para fora o papel grosso e lindamente preenchido pela mesma letra cursiva.

Minha cara...

Creio que ainda não posso me dirigir a você como gostaria, tanto por telefone quanto por um encontro formal.  No entanto, minha infeliz tentativa de deixar meu recente interesse em você, foi em vão.

Tenho estado em um interminável ciclo nesses últimos dias, onde acordar, passar horas pensando em olhos lindamente brilhantes se tornou parte dos meus sonhos.

Espero não tê-la assustado, mas meu interior vibra em imaginar um doce sorriso seu direcionado somente para mim.

Desejo que essa carta seja um incentivo para que finalmente possa me responder, deixarei o endereço no verso desta carta. Espero ansioso...

Atenciosamente
K.H.

Eu sentia os pelos do meu corpo arrepiarem de tal forma que a pele formigou em resposta, foi difícil perceber que meu corpo tentava respirar com dificuldade. Eu estava hiperventilando e só notei quando engasguei por falta de ar.

Deixei a carta em cima da mesa, e espalmei as duas mãos na madeira fria tentando recuperar meu fôlego. Era tudo muito confuso.

O que ele queria? Eu não sabia nem qual era o motivo de parecer tão interessado, em mim...?

Com a pouca coragem que eu ainda me restava — não tenho certeza da onde — e me levantei. Meu quarto tinha um pequeno armário onde eu costumava guardar documentos e coisas de papelarias, não que eu usasse sempre, mas gostava de ter tudo aquilo a minha disposição caso fosse necessário.

Puxei uma das folhas com pequenos detalhes em folhagens, quase invisíveis em tons de verde. Com uma caneta e a coragem desconhecida voltei para a cozinha.

Empurrei toda a papelada que eu acabei abrindo ali e suspirei antes de fazer o primeiro traço naquela folha tão bonita.

Caro senhor

Talvez eu não possa explicar o quanto isso me apavora, receber uma carta de alguém que sequer devia falar comigo nas circunstâncias atuais.

Posso entender o risco que corre entrando em contato com uma pessoa como eu e isso me amedronta.

No entanto, confesso que tal ato me deixou curiosa e gostaria de saber quais as razões para que quebre uma das leis que o senhor deve muito bem conhecer. Admiro essa coragem, mas tal ousadia pode acarretar na anulação do meu caso também, creio eu.

Agradeço os elogios, mas não vejo nada do que diz, fique bem.

Atenciosamente
Ume.

Dobrei a folha antes que eu me arrependesse de cada uma das palavras que eu coloquei ali. Puxei uma nova folha e a dobrei em forma de envelope, era fácil e não precisava de instruções para isso. Colei as pontas e encaixei a carta dentro.

Era mais do que eu cheguei a fazer um dia, na verdade, nem mesmo no ensino médio ou fundamental eu cheguei a experimentar tal forma de comunicação. Meus relacionamentos não eram nada amorosos e minha timidez cooperava para isso, pensei diversas vezes em quais motivos me levaram a ser assim, mas nada fazia sentido.

Suspirei e virei a carta, o endereço estava atrás como ele tinha informado e foi fácil copia-lo para o meu envelope.

Me sentia eufórica, era como se aquele envelope fosse um convite para que ele entrasse em meus sonhos e na minha vida.

Não que ele já não tivesse entrado, ele quem havia decretado minha vitória no julgamento e que vem me enviando cartas com tamanha cortesia. Parecia que eu estava em um livro brega de romance, onde a jovem inocente era perdidamente apaixonada pelo homem que jamais teria.

Clichê.

Mas ainda assim, cada pedaço de mim ansiava por essa sensação de desejo mútuo. Uma página cheia de loucuras e descobertas que em algum momento, próximo ou no futuro, quebraria meu pobre coração.

Nada demais, apenas mais uma obra do destino. Mais uma vez em que eu me meteria em um grande problema.

Peguei o envelope e não esperei o dia seguinte, mais alguns minutos e eu acabaria queimando aquele papel na boca do fogão. Calcei os chinelos que eu costumava deixar perto da porta, apenas para minimizar o tempo de procura e não perdê-los de vista.

Desci as escadas voando e coloquei o envelope na caixinha onde o carteiro podia pega-la e assim levar para seu destino. Agora não tinha mais volta. Estava feito.

O saguão parecia vazio e isso me fez ver o quanto podia estar sendo boba, claro que sim, me perdi nos olhos escuros de um homem que parecia ter o mundo guardado apenas para ele. Um sorriso encantador e um jeito sensual se mover os lábios e o sinal abaixo.

Eu definitivamente estava disposta a ter meu coração quebrado por ele, dar a mim mesma a chance de experimentar a mais profunda luxúria ou o que quer que ele quisesse de mim.

Talvez isso fosse além do que ele quisesse, mas eu não conseguia pensar em nada além do que poderia acontecer. Ainda mais com cada uma das frases e entonações que sua carta transmitia.

Eu queria, descobrir cada uma das palavras verdadeiras por trás das que foram escritas ali e isso me deixava em pânico. Meu corpo gelou ainda parado de frente para o saguão e não pude me mover enquanto imaginava quais seriam as reações daquele homem caso visse cada pedacinho meu.

Eu estava começando a enlouquecer.

Por Ele - KakashiOnde histórias criam vida. Descubra agora