Três horas já haviam se passado até Sarah acordar. Seus olhos pesavam e ela até pensou em dormir mais um pouco, mas estava sentindo um calor terrível. Tocou a testa e percebeu que suava frio, a febre finalmente havia passado.
Seu estômago começou a roncar muito alto, e como não tinha ninguém no quarto, resolveu se levantar e se ajeitar para ir até a cozinha. Ainda eram onze da manhã, portanto o almoço deveria estar pronto.Sarah lavou o rosto e o secou com uma toalha branca, depois colocou apenas um roupão de veludo azul por cima da camisola para ficar confortável. Se colocasse um vestido, com certeza iria ficar sufocada com as anáguas e vários panos por cima de si mesma. Assim, ela penteou os cabelos e fez uma trança comprida, que destacava mais o arredondado de seu rosto. Logo, se dirigiu até o corredor e parou diante das escadas.
A casa estava bem silenciosa sem a presença das pessoas, que haviam ido aproveitar o dia ensolarado em um piquenique. Só os empregados estavam ali, mas também não havia sinal deles.
Assim que desceu as escadas, Sarah foi até a sala de jantar e encontrou a mesa vazia, contendo apenas a decoração e três donzelas. A jovem pensou em esperar para ver se algum criado aparecia a fim de preparar a mesa para o almoço, mas como seu estômago estava cada vez mais impaciente, teve que ir até a cozinha.
Passando pelos corredores apertados do fundo da casa, pôde perceber que a ala dos empregados parecia um outro mundo. As paredes não eram pintadas e só se podia ver o reboco nelas, algumas velas mal iluminavam o caminho e não tinha uma janela sequer para entrar um pouco de luz no ambiente. A cozinha ficava no final do corredor, mas ao lado esquerdo, havia uma salinha contendo um espelho redondo pendurado, uma mesa de cabeceira, que abrigava alguns santos e velas. Parecia um altar bem simples, mas onde a fé prevalecia. Com certeza era um lugar onde os funcionários trocavam confissões e conversavam.
Então, saiu dali rapidamente e chegou no seu destino. Se o corredor não tinha nenhuma entrada para a luz, a cozinha continha inúmeras janelas, que iluminavam o ambiente e o deixava alegre. As paredes eram brancas e cheias de azulejos da mesma cor, com cestas azuis desenhadas neles. As panelas de barro e cobre estavam por todo o lugar, inclusive algumas estavam sobre o fogão a lenha, e outras estavam penduradas no alto sobre a bancada. Aqueles que estavam no fogo liberavam um cheiro de comida delicioso. Além de tudo isso, haviam também móveis brancos, que guardavam todas as louças, e uma grande mesa de madeira no centro, onde os criados se reuniam nas refeições.
Sarah observou a quantidade de pessoas que chegavam cansadas do trabalho e famintas. Eles passavam pela porta dos fundos, lavavam as mãos e logo se sentavam para se servirem da comida. Era um vai e vem constante, e a cozinheira não parava por um minuto tentando satisfazer todos. Parecia bem preocupada com o bem estar daqueles ao seu redor.
A jovem foi entrando devagar, para não assustar ninguém, já que não era comum uma mulher da elite colocar os pés dentro de um ambiente como aquele. Entretanto, sua tática não deu certo, pois logo atraiu todos os olhares para si.
- Senhorita Sarah! - assustou-se a cozinheira - Você não pode entrar aqui!
A criada, repetia isso constantemente, como forma de fazer a garota ir embora. Seria inadmissível se alguém a visse ali.
- Está tudo bem! Eu só estou com fome.
Os olhos negros da mulher se arregalaram de preocupação.
- Ah, meu Deus, sinto muito! Eu estava esperando a Zenaide me dizer o que deveria colocar em sua sopa.
Sarah apenas assentiu e deu mais um passo à frente, mas Marila, a cozinheira, entrou em seu caminho outra vez e como tinha o corpo mais rechonchudo, a jovem nada poderia fazer.
- Vou agora mesmo preparar uma canja! - disse a empregada se voltando para o fogão.
Ela pensou que assim a menina iria ficar satisfeita e voltaria até seus aposentos, mas estava enganada, porque Sarah insistiu em permanecer na cozinha.
- Não quero dar trabalho, posso comer o mesmo que todos eles. - disse a jovem, em voz alta, apontando para os trabalhadores.
Todos eles ficaram extremamente chocados e sem palavras pra atitude dela. Nenhuma mulher rica, em sã consciência, comeria a comida dos criados e muito menos, na cozinha. Era um grande desrespeito ao seu sobrenome.
Marila, que chegava a estar constrangida, chegou perto da moça e disse que aquela sopa que os outros comiam, era a sobra do jantar luxuoso de ontem. Enquanto dizia isso, Sarah olhava para o prato das pessoas e só ficava com mais fome, pois não tinha nada de desagradável. Não se importava com regras de etiqueta e muito menos em comer sobras, pois era o que fazia em sua casa em São Paulo, nesse período de crise da família.
- Eu não me importo, senhora. - respondeu ela
A cozinheira então, não fez mais restrições quanto a presença daquela jovem e permitiu que ela ficasse. Sarah se sentou na mesa, onde estava apenas dois dos empregados: uma mulher negra, como Marila e um homem branco.
A mulher, que se apresentou como camareira da senhorita Virgos, se chamava Tábata. Apesar da pele ressecada e com marcas do trabalho pesado, era uma jovem bonita, com cabelos pretos encaracolados, que estavam presos em um coque baixo, e de olhos castanhos escuros. Apesar de ser simples, tinha muito caráter e era uma sonhadora nata, pois queria muito construir uma família. Tinha uma expressão tão leve, que fez Sarah se sentir acolhida por ela naquele momento. As duas trocaram uma grande afinidade só pelo olhar.
Ao lado da criada, estava o seu noivo Marcos, um homem frustrado e egoísta. Porém, tinha o corpo forte e era bem apessoado, seus cabelos castanhos estavam sempre bem alinhados e sua barba bem feita. Não era lindo, mas havia atrativos nele. Ele não merecia sua noiva, pois seus ideais eram enriquecer, mesmo que tivesse que passar por cima dos outros. Por ser branco, se sentia superior que Tábata e achava que podia menosprezá-la por conta disso. Era simplesmente um grande imbecil. Naquele momento, os seus olhos castanhos miravam nos de Sarah, tentando deixar bem claro de que ela não era bem vinda ali.
De repente, Gael passou pela porta dos fundos e deu de cara com a moça. Ele ficou alguns instantes em pé, olhando para ela, com as sobrancelhas franzidas como se não entendesse o motivo dela estar ali. Mas, logo retomou a atenção e a cumprimentou, tirando o chapéu.
- Senhorita Sarah! - disse, com a voz firme.
Ela, surpresa de vê-lo naquele momento, o observava enquanto seu coração batia cada vez mais forte. Era incrível como sentimentos que não reconhecia, se tornavam mais intensos quando encontrava o capataz.
Gael se sentou na mesa, de frente para a moça, e sorria timidamente. Os dois trocavam olhares constantes, mas tentavam disfarçar. Os olhos esverdeados do rapaz brilhavam de admiração pela coragem de Sarah estar ali, entre os menos favorecidos. Ele já havia percebido que aquela senhorita não era mesquinha como a mãe, mas não poderia imaginar que era tão vivaz.
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A noiva falida
RomanceDepois da morte de seu pai e a ascensão da República Brasileira, Sarah e sua mãe se encontram falidas e precisam arranjar um jeito de continuarem no círculo social de São Paulo. Ao escapar de um casamento arranjado por Célia, sua mãe, Sarah terá que...