16 | há falhas que compensam

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Perdi a conta às vezes que me maldisse durante estes dois dias, mas tenho a certeza que superei todas as vezes que roguei pragas ao meu professor de direito penal em todos os meses que tive aulas com ele durante o tempo da faculdade.

Aquele homem, com pouco mais de cinquenta anos na altura, era uma das poucas criaturas criadas sobre o calor do inferno, e todos os alunos que desistiram da sua cadeira eram testemunhas disso.

- Ele está ali fora.

A voz carregada de um frio capaz de congelar meio país do meu irmão serve-me de incentivo para colocar a grande mochila aos ombros e segurar entre os dedos uma pequena, mas pesada, mala.

Obrigo-me a caminhar até à porta de entrada e com ajuda do meu irmão abro-a. O Leo é o primeiro a sair e com um sorriso no rosto e uma alegria que eu desconhecia, corre até aos braços do pai que se coloca à sua altura com um sorriso estampado no rosto. Dou um último beijo no rosto do Mateus e repito o trajeto do Leo.

O Leonardo abre a mala do carro, que estranhamente apenas tem uma mochila de ombros um pouco parecida à minha, e num gesto subtil de cabeça cumprimenta o Mateus que permanece junto à porta.

Não sei os pensamentos que circulam pela mente do meu irmão, e com certeza serão muitos, mas de um estou segura que marca presença: a melhor forma de assassinar alguém sem deixar provas e o Leonardo é um forte (e único) candidato a tornar-se numa vítima.

- Deixa que eu meto-o na cadeirinha - diz assim que fecho a mala do carro

Murmuro um ok e contorno o carro para me puder sentar no banco ao lado do condutor, mas não sem antes levantar a mão e acenar um par de vezes ao Mateus, e à Núria que observa atenta a cada e qualquer movimento através de uma das janelas do quarto.

Tenho a certeza que se o Mateus não a proibisse de descer, agora estava a cuspir todas as palavras entaladas desde há três anos ao Leonardo.

Não que ele não merecesse ouvi-las, mas não hoje.

Não quando estamos a minutos de embarcar em algo que é desconhecido para os três.

Tempo juntos.

Os três.

Durante quatro dias e no meio da natureza onde as distrações exteriores vão ser escassas e o tempo que temos para dedicar-nos a conhecer-nos vai ser bastante.

Tanto que sinto-me assustada.

- Estás mais calada que o normal.

A sua voz masculina traz-me à realidade. Uma realidade em que o carro já desliza pelo alcatrão da estrada e as árvores vão desaparecendo à medida que a velocidade aumenta.

Desvio o meu olhar da estrada e esbarro com a sua figura ao meu lado com a atenção depositada na estrada.

Uma mão no volante enquanto que o outro braço descansa na janela aberta, o rosto iluminado pelos pequenos raios do sol, a barba aparada (como sempre), a mandíbula bem traçada, os braços trabalhados semi-escondidos por uma t-shirt de manga curta e...

- Não é que não goste ser o teu centro de atenções, mas dessa maneira pressionas-me - desvia o olhar da estrada para se focar em mim - A discrição continua a não ser o teu forte, Nena - ponho os olhos em branco e respiro fundo para não cravar a minha mão no seu ombro - Ele é sempre assim?

Aponta com o queixo para o espelho e eu necessito de me retorcer no assento para ter a mesma visão que ele: o Leo a dormir com o urso acastanhado nos braços junto ao peito.

- Estava tão ansioso com o acampamento que não dormiu quase nada... mas sim, normalmente ele adormece nas viagens de carro.

- Cálculo que tu também dormiste pouco, porque não descansas um bocado? Falta... - olha para o relógio que costuma trazer no pulso - Meia hora, talvez um pouco mais para chegarmos, não é muito, mas é melhor do que nada - abro a boca para o contrariar - Descansa.

𝑑𝑖𝑧-𝑚𝑒 𝑞𝑢𝑒 𝑚𝑒 𝑎𝑚𝑎𝑠Onde histórias criam vida. Descubra agora