59 | ideias descambidas

3.5K 165 48
                                    

Os seus dedos dedilham a minha perna, em toques meigos e sem malícia, debaixo da mesa, onde os olhares são cegos e a atenção permanece centrada nos pratos, agora, vazios, contudo pintados dos escassos vestígios de um dos dotes do Mateus.

A culinária.

Em especial, uma das receitas que tantas vezes rogavamos quando ainda não tínhamos idade para suportar qualquer tipo de responsabilidade.

O som compassado do toque do telemóvel que lhe vibra dentro do bolso interior do smoking, deixa o silêncio tomar, finalmente, conta das nossas vozes que, nem por um único segundo, ficaram mudas durante o jantar, antes de deixar, na minha pele, a marca de presença da chama dos seus dedos e arrancar o aparelho do bolso.

- Desculpem-me, mas preciso mesmo de atender...

- Sem problemas.

A tranquilização do Mateus serve-lhe de incentivo para se levantar da mesa e afastar-se até ao jardim, ao passo que eu limito-me a inundar as suas costas com o calor do meu olhar à medida que caminha de um lado para o outro, na pouca iluminação das luzes da rua, com uma das mãos no bolso.

- Então e como é que estão a correr as coisas com o novo escritório? - novamente, a voz do Mateus a fazer-se ouvir

- Neste momento, faltam terminar pequenas obras, mas é tudo questão de semanas.

- E o que estás a pensar fazer com o teu escritório atual? - entrego a minha atenção aos olhos cor de mel que me fitam

- Vendê-lo.

- E se as coisas entre vocês os dois não voltarem a dar certo?

Deslizo o meu olhar até ao menino sentado ao meu lado imediatamente a seguir a vislumbrar a sua figura que continua a deambular pela relva cortada recentemente com o telemóvel colado ao ouvido.

- Não é uma opção, Núria - imponho - Eu sei que ainda não superaste a ideia de isto... - assinalo com indicador entre o Leonardo e eu - Estar a acontecer, mas, mais tarde ou mais cedo, terás de colocar uma pedra sobre o passado, tal como eu fiz.

- Desculpa se não consigo esquecer todas as noites que passamos as duas acordadas, tu com a cabeça deitada no meu colo a chorar e eu a fazer o lugar de alguém que desistiu de ti.

- Não se trata de esquecer. Trata-se de perdoar o passado porque se não o fizermos viveremos sempre abraçados às nossas feridas sem a possibilidade de as deixar cicatrizar.

- Por favor, meninas, pensei que já tínhamos falado sobre isto...

O seu pequeno punho faz estremecer a meia dúzia de copos, assim que golpeia com um pouco de força a mais a mesa, antes de se levantar e desaparecer por entre o largo corredor nas minhas costas. O estrondo de uma das portas no andar de cima não demora a fazer-se sentir por cada metro quadrado, depois de, num passo apressado, subir as escadas que dão acesso ao piso dos quartos.

- Tens de a perdoar, Madalena - também o Mateus se levanta - Há mais de um mês que não fazemos S.E.X.O - soletra

- Ei! Eu sei que somos próximos, mas há coisas que não preciso de saber.

- Mas esta precisas porque é, realmente, a origem do mau humor dela.

Balanço a cabeça de um lado para o outro quando, também ele, desaparece nas minhas costas e o ranger das escadas ecoa pelos escassos ruídos da noite que penetram pela o espaço aberto da janela.

O som que os nódulos dos seus dedos fazem ao embater no vidro que nos separa, atrai a minha atenção até ao turquesa gélido do seu olhar e, sem hesitar, ajudo o Leo a descer da cadeira.

𝑑𝑖𝑧-𝑚𝑒 𝑞𝑢𝑒 𝑚𝑒 𝑎𝑚𝑎𝑠Onde histórias criam vida. Descubra agora