Por vezes pensamos que tudo está sob o nosso controlo, mas as decisões que tanto tememos continuam a perseguir-nos tão depressa que nos levam a fazer escolhas que, se não fosse pelo toquezinho no ombro da pressão causada pelas decisões que nos assombram, nunca obteriamos por esse caminho.
E aí entra o coração. Aquele que frequentemente decidimos ignorar porque temos uma tendência para gostar mais dos caminhos fáceis do que daqueles com espinhos, ainda que estes nos levem a bom porto e os anteriores não, e nem sempre o coração nos dá de mão beijada uma estrada livre de pedras e brechas.
Mas uma coisa é certa. Quando o coração manda não há nada a fazer. Podemos inventar um rumo duvidoso só para escapar a todas as brechas que estalam o caminho por onde o coração nos quer enviar, mas isso apenas vai atrasar o nosso percurso, porque o ponto de partida será sempre aquela estrada cheia de espinhos.
- Madalena Noronha e Leonardo Menezes.
O olhar esverdeado do homem enrugado atrás do pequeno balcão cai sobre o Leonardo, depois em mim e finalmente nos papéis que segura nas mãos.
Desliza o indicador pelo mesmo e, assim que se detém nos nossos nomes escritos na lista, assinala com um pequeno visto com a caneta azul presa à mesa por uma corda e, com um olhar breve, dá-nos a indicação de que podemos subir a meia dúzia de escadas que nos levam até ao terraço.
As luzes amareladas presas nos ramos das árvores que amuralham as mesas de madeira redondas e devidamente enfeitadas no centro do terraço. O toque rústico das ruínas que acompanham a paisagem da cidade que desaparece pela escuridão da noite a uns metros de altura. As meninas que seguram nos seus vestidos compridos para conseguirem correr sem problemas junto da varanda protegida por um pequeno muro. O som das gargalhadas daqueles que, animadamente, conversam em grupos espalhados por todo o comprimento do terraço. E um homem de fato cinzento que caminha na nossa direção com uma pequena curva nos lábios e uma mistura de confusão e estranheza no olhar.
- Aí está ele - cumprimenta o Leonardo com um simples acenar e desvia o olhar para mim por uns segundos - E vejo que vens muito bem acompanhado.
Os seus dedos, que em momento algum tiveram a coragem de se desprenderam da minha mão, remexem-se inquietos contra a minha pele quando o olhar acastanhado do homem à nossa frente desliza pelas minhas curvas com um sorriso provocativo nos lábios.
- Amadeu de Jesus.
Estica-me a mão e eu devolvo-lhe o aperto.
- Madalena Noronha.
As curvas dos seus lábios desaparecem e a diversão que iluminava os seus olhos desvanece-se no segundo que me apresento e a sua atenção regressa ao rosto fechado do Leonardo.
- Madalena Noronha, representante oficial da Legal Vision. Foi por causa dela que desististe do cliente do sul?
Ergo a minha atenção em busca do turquesa que insiste em não envolver-se com o acinzentado dos meus olhos, na tentativa de abrigar o meu coração da tempestade de sentimentos que se forma no centro do meu peito, no entanto assim que, por meio segundo, os nossos olhares se entrelaçam e eu consigo ver a verdade misturada na escuridão dos seus olhos, percebo que o formigueiro na ponta dos meus dedos já são estragos da agitação frenética do meu coração.
- Eu não acredito nisto... - ouço o homem à minha frente murmurar, porém a minha atenção contínua na figura ao meu lado - Tu desististe de um negócio de milhões por uma mulher, Leonardo. Onde é que tinhas a cabeça?
- O escritório é meu, quem toma as decisões sou eu e...
- Estamos na merda, Leonardo! Por acaso tens visto os relatórios das ações? Estão cada vez mais baixos e se continuar assim para o mês que vem estamos todos na rua! - ajeita a gravata negra - Nunca pensei que o senhor perfeitinho fosse foder tudo por uma mulher...
Pela primeira vez sinto atrevimento por parte dos seus dedos em soltarem-se da minha mão, mas, e por conhecê-lo melhor do que alguma vez imaginei que conheceria, envolvo o seu punho com as minhas duas mãos. O seu olhar encontra o meu à velocidade da luz e a tensão que há segundos era bem visível na sua mandíbula e na pequena ruga junto da cicatriz por cima do olho, desaparece sem deixar rastro algum da ira que, provavelmente, lhe circula nas veias.
Volto a devolver a minha atenção até ao moreno que, supostamente, estaria a uns centímetros de nós, mas apenas encontro a sua sombra que se retira à medida que o homem caminha em direção oposta à nossa.
- Disseste-me que tinha sido uma decisão tomada em reunião... - afasto as nossas mãos
- Porque não queria que o facto de saberes a verdade influenciasse os teus sentimentos por mim.
- Quão má é a situação? - prepara-se para dizer algo - A verdade desta vez.
Um suspiro escapa pelos seus lábios no segundo que deixa os seus turquesas navegar à deriva pelo terraço.
- O dinheiro não é um problema. O problema está no decréscimo das ações... começaram a cair quando o meu pai anunciou a sua retirada e, desde então, nunca mais consegui recuperá-las - funde o seu olhar com o meu - Não quero que te sintas culpada por nada. Fui eu que tomei esta decisão e voltaria a tomá-la novamente se fosse preciso. Ambos sabemos que o teu escritório merece muito mais reconhecimento do que aquele que tem tido e pela fama do meu pai tu nunca terias a hipótese de conseguir um contrato com o Albuquerque.
- Leo, eu...
O som rítmico dos aplausos daqueles que se aglomeram no centro do terraço, obrigam-me a silenciar e a focar-me no pequeno palco instalado junto da decoração florida em espécie de arco.
Instintivamente, sinto os nervos que me gelam a barriga desde o começo da noite, humedecer-me as mãos quando o homem de cinquenta anos sobe a meia dúzia de degraus até ao microfone posicionado no meio do palco e cumprimenta, com um estranho sorriso no rosto, as dezenas de pessoas presentes.
- Antes de, finalmente, darmos início a esta pequena festa, gostaria de agradecer a todos por estarem aqui, naquele que, esperamos ser, o momento de viragem nas nossas empresas. Como muitos de vocês sabe, o nome das minhas organizações tem sido alvo de injúrias pela comunicação social que alega a existência de tratamento sujo do dinheiro investido pelos nossos clientes e, como tal, eu e os meus sócios decidimos que estava na altura de debater todas as acusações em tribunal de modo a repor toda a verdade. Posto isto, e sem me prolongar mais, gostaria que a minha nova representante se juntasse a mim.
E, uma vez mais, o fôlego que jurei ter recuperado nos últimos minutos, volta a perder-se entre as investidas frenéticas do meu coração e as pequenas borboletas que, num ato de rebeldia, se soltaram no meu estômago.
Entre o aplauso demorado, o tremor nas pernas e as dezenas de olhares cravados em mim quando, quase por arrasto, subo os seis degraus do palco, a curva radiante dos seus lábios é o único que me faz encarar a multidão com alguma tranquilidade. Devolvo-lhe um pequeno sorriso, ainda que, certamente, é mais um símbolo de agradecimento do que qualquer demonstração de carinho, e, pela primeira vez, foco-me no manuscrito preso no púlpito onde pouso as mãos, uma em cada lado do microfone negro. Em muito tempo, o silêncio é a palavra de ordem. Apenas se ouve os sons da noite e a minha respiração, agora um pouco mais controlada. Não há múrmuros. Não há crianças a chorar. Não há nada mais do que o ruído que se espalha na minha mente das engrenagens que tentam acompanhar a velocidade pouco natural dos meus pensamentos.
Devolvo, uma vez mais, a minha atenção aos homens e mulheres que esperam ansiosamente pelo meu discurso, e, sem necessitar de me esforçar, o meu olhar esbarra na confusão nos turquesa que me observam meticulosamente.
Quatro segundos.
Quatro segundos para ele se dar conta de que estou prestes a alterar o meu discurso.

VOCÊ ESTÁ LENDO
𝑑𝑖𝑧-𝑚𝑒 𝑞𝑢𝑒 𝑚𝑒 𝑎𝑚𝑎𝑠
RomanceTrês foram os anos que ele se aguentou sem a sua âncora e submergido nos seus próprios demónios que não tiveram piedade alguma em afundá-lo num mar escuro. Agora que, por uma casualidade do destino, ela está de volta, Leonardo vai lutar pela mulher...