27 | amén

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Leonardo

Entro na sala e sinto que todos os olhares se debruçam sobre mim. Cumprimento com um simples gesto de cabeça algumas das miradas vazias, ajeito o fato negro que prometi nunca mais usar depois do funeral do André e obrigo-me a caminhar até ao primeiro banco da frente.

O silêncio é a palavra de ordem da pequena capela cheia de homens e mulheres que, à exceção de um ou de outro, não reconheço e os luxos que fazem questão de ostentar retiram-me qualquer vontade de o fazer.

Ministros, juízes e advogados, sentados uns ao lado dos outros, sem hierarquias jurídicas, nem distinções, ademais das joias e do vazio que exibem que são uma clara prova daquilo que são. Quanto maior é o vazio nos seus olhares, mais alto é o cargo que desempenham.

Deixo-me cair sobre o banco de madeira quente pelos raios de sol que entram pelas janelas grandes em cada um dos lados da capela onde a cor branca predomina. A cruz de madeira iluminada por luzes pregada no centro do pequeno altar. Dois quadros com imagens religiosas fixos em cada extremidade da parede. Um par de flores brancas sobre um caixão de madeira fechado.

E a sua cabeça pousada no meu ombro enquanto que as nossas mãos se encaixam na perfeição, como se, em algum momento entre a nossa fecundação e o nosso nascimento, alguém tivesse pegado numa caneta e com traços bastante precisos desenhasse cada milímetro dos nossos dedos de modo a que estes se encaixem com a maior exatidão possível.

- Eu sei que não é fácil estares aqui... depois de tudo o que ele te fez - levanta a cabeça do meu ombro para conseguir olhar-me nos olhos - Se quiseres, podes ir...

- Sabes perfeitamente que não estou aqui por ele...

- Então por quem estás? - pergunto-lhe inocente mesmo já sabendo a resposta antes de deixar cair a minha atenção nos seus lábios umedecidos pela sua língua - Estás aqui por mim, verdade? Podes dizê-lo, Madalena.

O seu olhar brilhante encontra outro ponto para se fixar que não os meus olhos, como se acabasse de cometer algum crime e eu fosse capaz de desvendá-lo só pelo simples gesto de afundar a minha mirada na sua. Os seus dedos despedem-se dos meus no mesmo segundo que se levanta e desaparece por entre os bancos compostos de pessoas até à porta cinzenta que emite um pequeno rangido quando ela a abre. Afundo os dedos no cabelo quando o estrondo da porta ecoa pela capela, despertando a atenção dos que ainda permanecem sentados que, imediatamente, desviam a sua atenção para mim quando percorro os mesmos passos que me levam à saída.

- Madalena - acelero o passo para conseguir aproximar-me dela e, antes de ela destrancar o carro, enjaulo-a entre a porta do mesmo e o meu corpo - O que estás a fazer?

- Não te parece lógico?

Eleva as chaves do carro à altura dos meus olhos e as manchas negras, que até agora estavam cobertas pelas mangas do casaco, despertam a minha atenção. Seguro no outro pulso num movimento brusco para que ela não tenha tempo de se afastar de mim, porque seguramente o faria, e deslizo a manga do seu casaco até a meio do braço.

- Só vou perguntar uma vez. Como é que fizeste estas nódoas negras?

Silêncio.

São precisos três segundos de silêncio para o meu sangue começar a ferver.

A merda de três segundos para sentir que cheguei ao inferno.

- Não, não é isso que estás a pensar - dou um soco no tejadilho do carro antes de me afastar de ela - Espera, onde é que vais?

Atravesso a estrada sem me preocupar em olhar para ambos os lados enquanto me desfaço do smoking que começa a apertar demasiado a tensão criada pelos meus músculos, e destranco o meu carro estacionado em cima do passeio.

- Leonardo, ouve-me, por favor...

As suas pequenas mãos ainda conseguem envolver o meu braço, no entanto, e apesar de se esforçar em manter-me junto dela, consigo libertar-me da sua força com facilidade. Abro a porta do carro, entro e sem me preocupar em colocar o cinto arranco. Furioso. Sem rumo. E com o sangue a fervilhar por debaixo da ponta dos meus dedos que apertam o volante com uma força que eu não sabia que tinha.

Pelo retrovisor vejo-a a correr para o próprio carro com o telemóvel nas mãos e, como se respondesse à minha pergunta, o meu telemóvel começa a vibrar no meu colo. Deslizo o dedo, ignorando-a uma vez mais, e deixo morrer o meu pé no acelerador, sem me importar com o vermelho nos semáforos, ou sinais de stop e, muito menos, com os automóveis que me aparecem à frente e que consigo desviar-me sem dificuldade alguma. Desaperto a gravata enquanto desbloqueio o meu telemóvel com a mesma mão que está pousada no volante e vou até à lista de contactos. Procuro a letra H e carrego no primeiro nome que aparece.

- Em que merda te meteste? - atende-me ao fim do terceiro toque

- Hugo, lembras-te daquele tipo que te falei? - passo a língua pelos dentes - O Francisco.

- O tipo do horário? Sim, sei.

- Ótimo - volto a esquivar-me de mais um carro - O gajo está aí?

Uns segundos de silêncio da sua parte.

- Em quê que estás metido? E que barulho é esse? - buzinas

- Ele está aí, não está? - ouço-o suspirar - Em cinco minutos estou aí, preciso que o empates - murmura algo - E que mantenhas o ringue livre.

- Não vou fazer nada enquanto não me disseres quem é este tipo.

Desaperto os primeiros botões da camisa antes de fazer uma curva acentuada à esquerda e seguir por uma rua mais estreita e, felizmente, livre de trânsito.

- Esse cabrão tocou na mãe do meu filho - afundo ainda mais os dedos no volante

- Devias ter começado por aí, merda. Vou buscar as luvas.

- Luvas? - deixo escapar um sorriso enraivecido - Não preciso das luvas para desfazer esse filho da puta.

Atiro o telemóvel para cima do banco do passageiro, no entanto este acaba por escorregar e cair entre ambos os bancos e, apesar de o ouvir vibrar, não me preocupo em procurá-lo.

Estaciono o carro de qualquer forma assim que chego ao edifício azulado e, guiado pela fúria e pela rigidez dos meus músculos que me pedem enfurecidamente para descarregar a raiva acumulada, entro pela porta de vidro. O meu coração implora-me desesperadamente para explodir através dos batimentos que aceleram a cada passo que dou na sua direção.

Cento e quarenta e cinco.

Cento e quarenta e seis.

Cento e quarenta sete.

- Mete, pelo menos, a proteção dos dentes.

Ouço o Hugo murmurar quando passo por ele junto da mesa da recepção, mas, e como tenho feito com toda a gente que se tem atravessado à minha frente, ignoro-o enquanto arregaço as mangas da camisa e encurto ainda mais a distância entre mim e o meu alvo a abater.

- Sobe - sinto um desconforto na mandíbula por estar tensa

- Desculpa? - desvia o olhar na minha direção - Leonardo Menezes. Finalmente tenho o prazer de te conhecer... - estica-me a mão com um sorriso cínico nos lábios - Vejo que ainda estás sentido por a Madalena me ter escolhido a mim...

Só percebo que o Hugo se juntou a nós quando sinto a sua mão ao redor do meu punho cerrado e a poucos centímetros da cara do homem à minha frente.

- Leo... - sussurra-me

- Leonardo - pousa o peso no chão - Leo é o nome do meu filho.

Vou matá-lo.

𝑑𝑖𝑧-𝑚𝑒 𝑞𝑢𝑒 𝑚𝑒 𝑎𝑚𝑎𝑠Onde histórias criam vida. Descubra agora