60 | dois traços

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3 meses depois

Dois traços.

Dois. Traços.

Os ruídos indomáveis que me estremecem o peito, silenciam as vozes das mulheres que conversam, do outro lado da cabine da casa de banho feminina, sobre a reunião que está prestes a começar, à medida que a mistura dos perfumes que circulam pela meia dúzia de metros quadrados intensifica a rebeldia de sensações, nem todas agradáveis, no vazio criado pela intolerância do meu estômago desde a última vez que o meu corpo rejeitou um insignificante pedaço de fruta.

- Madalena? Estás bem?

Volto a examinar as duas linhas desenhadas em forma de cruz, na esperança de que uma delas, magicamente, desapareça com a agitação dos meus dedos trêmulos, contudo, o único que começa a desvanecer, é o oxigénio que se divide entre as minhas veias e o elo de ligação que nos une. A mim e ao responsável por esta fragilidade que me consome.

- Estou.

A voz arranha-me a garganta, antes de me desfazer da caixa azul e branca e esconder o teste de gravidez dentro da mala que rapidamente coloco ao ombro, depois de abrir a porta e os dois pares de olhos escrutinarem cada centímetro meu com um olhar que mistura estranheza e preocupação.

- Tens a certeza que estás bem? Estás pálida.

- A Lina, tem razão. Precisas que chame o Leonardo?

- Não.

Apresso-me a rodar o manípulo da torneira com os dedos ainda instáveis e, como se a minha vida dependera da água gélida que me refresca o calor inumano da pele, afundo o rosto na pouca quantidade de água que as minhas mãos, em formato de concha, conseguem suportar.

- Chatearam-se? - fito-a através do reflexo do espelho

- Não, mas, neste escritório, a nossa relação é estritamente profissional e quanto menos contacto tivermos um com o outro, mais fácil será essa distinção. Além disso, como podem ver, estou nas melhores condições - retiro duas folhas de papel do dispensador metálico pregado à parede e seco o rosto - Agora, se me dão licença, há uma reunião prestes a começar.

A sensação enferma volta a corroer-me o estômago num desconforto abdominal nauseante, o que me força a deixar escorregar a mala negra presa ao ombro e abrir a porta escura da primeira cabine disponível, ajoelhando-me junto do vaso sanitário, imediatamente após, ao estrondo que a porta faz ao fechar-se.

- Se estas são as tuas melhores condições, não quero pensar quais serão as piores. Carolina, avisa o doutor Leonardo, por favor.

- Atreve-te a mencionar o que quer que seja e... - inspiro o máximo de ar que consigo - e eu juro que te despeço.

- Deixa-nos a sós, então.

Sem forças e abraçada por uma inutilidade disposta a roubar-me o último pingo de brio que me resta, encosto-me à divisória que separa as duas cabines, de olhos cerrados e com alguma debilidade nas inspirações que, com alguma dificuldade, faço, ouço o som dos seus saltos altos desaparecer do outro lado das paredes brancas, mal a fechadura metálica da porta faz um pequeno estalinho e a suavidade do som da água fazer-se ouvir.

- Sabes que, quando estava grávida do meu segundo filho, senti-me humilhada pelo meu próprio corpo...

Lentamente, abro os olhos ao ouvir o ranger da porta que nos separa, uns segundos depois do ruído da água deixar de combater o silêncio que nos abraça. Os seus dedos seguram o papel com que me umedece os lábios um tanto quanto ressecados, assim que se curva diante de mim.

𝑑𝑖𝑧-𝑚𝑒 𝑞𝑢𝑒 𝑚𝑒 𝑎𝑚𝑎𝑠Onde histórias criam vida. Descubra agora