17 | uma questão de ângulo

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- Não vai acontecer - ofereço-lhe as costas e avanço pelo caminho de terra - Uma coisa é esqueceres-te de a trazer, outra, completamente diferente, é fazeres de propósito.

- Então estás disposta a deixar-me dormir no meio da rua?

- Estou e sabes porquê? Porque estás habituado a que as coisas sejam sempre feitas à tua maneira, e nem sempre podem ser.

O tom da minha voz acaba por ser mais frio e alto do que desejava e isso desperta a curiosidade das poucas pessoas que nos rodeiam.

Tento ignorar os olhares dos mais interessados e continuo a percorrer o terreno com algumas áreas verdes até encontrar um dos poucos espaços disponíveis para montar a tenda.

Não sei de que momento falava quando proferi as palavras que apagaram o brilho dos seus olhos por uns instantes, mas do que não tenho dúvida é que não me referia às suas atitudes recentes e muito menos por não ter trazido uma mera tenda.

Talvez seja mais uma das muitas coisas que a Núria me advertiu aquando do seu interesse por fazer parte da vida do filho, e em certa parte da minha também.

"As palavras não foram ditas, mas decididamente estavam lá, por isso, mais cedo ou mais tarde, vão acabar por ser cuspidas mesmo em momentos em que não se refletem" disse-me naquela manhã nublada de primavera. Isso acaba de acontecer.

- Fazemos o seguinte... - interrompe-me os pensamentos antes de encurtar a pequena distância que nos separa - Se tu conseguires colocá-la de pé, eu arranjo outro sítio para dormir... Se pelo contrário não conseguires, deixas-me ficar - estende a mão na minha direção

Deslizo a minha atenção até à sua mão e por uns segundos perco-me nas pequenas cicatrizes ao redor dos seus nódulos.

Afasto as minhas questões acerca das circunstâncias que o levaram a ferir-se naqueles locais e subo o olhar até me focar nos seus olhos cor de mar, estico a minha mão e aperto ligeiramente a sua.

- Combinado.

Para além da luz incidente no seu rosto proveniente dos últimos minutos de sol que ainda restam até este ser trocado pela luz da lua, um outro brilho paira sobre os seus olhos.

Algo como confiança e convicção de que, mais uma vez, as coisas vão ser feitas de acordo com os seus desejos.

Termino a minha inspeção e sem lhe dar a entender que não percebo nada de tendas de campismo e muito menos como montar uma, debruço-me junto do pequeno saco largado no chão e começo por tirar o livro de instruções.

Afinal, o que pode correr mal quando se tem um livro de instruções à frente?

Antes de começar a seguir os seis passos descritos no papel dobrado em quatro, consigo ver por cima do ombro que a segurança que antes se limitava apenas pelos seus olhos agora já escorreu até ao seu (recente) sorriso.

Respiro fundo, afastando a pressão que o quente do seu olhar provoca nas minhas costas, e começo a seguir as instruções, lendo letra a letra para não deixar escapar o mais pequeno pormenor.

- Tens a certeza que estás a ler a instruções como deve ser? - questiona com um tom de sarcasmo quando tento pela segunda vez manter a tenda de pé e sem sorte ela desmorona - Talvez seja altura de me deixares ensinar-te como se monta uma tenda.

- Eu sei o que estou a fazer, o vento é que dificulta tudo - uma gargalhada escapa pelos seus lábios

- O vento hipotético, imagino - sussurra com a comissura dos lábios curvada - Sabes o porquê de ela não se manter de pé? - debruça-se atrás de mim e com as minhas costas coladas ao seu peito guia as minhas mãos até às estacas presas no chão - Têm de fazer um grau de quarenta cinco graus com o chão e não de noventa - pela pouca distância a que estamos os seus lábios quase roçam no meu ouvido à medida que fala - Assim conseguem suportar melhor o peso vertical fazendo com que a tenda não caia... com o vento.

𝑑𝑖𝑧-𝑚𝑒 𝑞𝑢𝑒 𝑚𝑒 𝑎𝑚𝑎𝑠Onde histórias criam vida. Descubra agora