O calor da luz matinal beija-me a face em raios solares pouco gentis ao ritmo de uma melodia que se alastra pelas paredes do corredor. Uma melodia doce, e um tanto quanto melancólica, tocada entre as teclas brancas e negras do piano em que os seus dedos divagam em toques meigos inundados de pureza e dos sentimentos submergidos na nudez da sua alma.
É ele.
Na sua essência.
E se, algum demónio estiver disposto a varrer-lhe a mente com uma poeira negra de pensamentos sombrios, o melhor momento é, exatamente, nos minutos em que os seus dedos dedilham as teclas do piano negro, pois esses são os instantes em que a sua vulnerabilidade atinge níveis que nem mesmo o brilho dos pontos fixos na escuridão da noite é capaz de competir.
Sigo a pauta imaginária que passeia pelo apartamento em passos lentos, sem pressa e quase como se pisasse cada nota tocada, até à sala, onde o encontro de olhos fechados no pequeno assento, centrado no sentimento que lhe consome o peito, e a ser observado pelo menino que, com os níveis de atenção no máximo, o admira desde o sofá.
- Mãe!
Os seus olhos abrem de golpe, mesmo antes do menino saltar do sofá e correr até mim. Automaticamente, debruço-me à sua altura e envolvo-o entre o calor do meu peito e o esconderijo dos meus braços.
O universo de estrelas eternizado no seu olhar turquesa escrutina-me com um brilho a roçar o reflexo incandescente da luz do sol ao incidir numa pedra de diamante, enquanto, nos seus lábios, habita uma pequena curva que, no tempo em que se mantiver, remeter-nos-á sempre à chama que incendeia os nossos peitos desde o dia em que cruzamos, pela primeira vez, um simples olhar.
Arrasta-nos ao dia em que começámos a erguer os alicerces que sustentam o amor cravado em cada batimento cardíaco.
A cada sentimento que, com paciência e uns anos pelo meio, nunca deixámos de nutrir, porque amar é muito mais do que gostar e não se basta gostar para amar.
Num primeiro contacto, as emoções podem borbulhar à superfície da inquietação da corrente sanguínea, o que, muitas vezes, nos confunde com amor à primeira vista. Mas esse não existe. Pode acontecer atração, paixão, desejo, tesão à primeira vista, mas amor nunca. Porque esse aparece nos pequenos pormenores. Esse requer uma construção progressiva e nem sempre precisa, porque no amor não existe a palavra perfeição e é por isso que, quando desenhamos corações numa folha de papel, eles nunca saem impecáveis.
Há sempre uma imperfeição que os torna únicos e, assim como nunca há duas impressões digitais iguais, a forma como corrigimos essas falhas é o que diferencia um (não) amor.
- Filho... - segredo-lhe ao ouvido - Pergunta ao pai se aceita namorar comigo.
A sua cabeça agita de cima para baixo num movimento veloz e, sem me colocar de pé, apesar da dor dormente que se alastra pelos músculos das minhas pernas, sigo com o olhar cada passo seu até ao homem que, depois de receber a informação ao ouvido, não contém o sorriso que lhe desenha o rosto e o deixa, incontornavelmente, mais bonito.
Sem estranhar a questão proposta, repete o meu gesto e sussurra algo ao ouvido da pequena criança que volta a correr na minha direção com uma curva inocente nos lábios.
- O pai disse... - encosta os seus lábios ao meu ouvido, em jeito de segredo - Pergunta à mãe se aceita casar comigo.
Sorrio, tímida.
- Estamos a elevar o standard no amor ao nosso filho, Leonardo Menezes.
- A elevar? Não creio... - levanta-se do pequeno banco posicionado no centro do piano e aproxima-se - Pelo contrário, ele precisa de saber que não pode aceitar menos do que isto - coloco-me de pé e o seu braço não demora a puxar-me para si, assim que envolve os meus ombros - Como é que estás?

VOCÊ ESTÁ LENDO
𝑑𝑖𝑧-𝑚𝑒 𝑞𝑢𝑒 𝑚𝑒 𝑎𝑚𝑎𝑠
RomansaTrês foram os anos que ele se aguentou sem a sua âncora e submergido nos seus próprios demónios que não tiveram piedade alguma em afundá-lo num mar escuro. Agora que, por uma casualidade do destino, ela está de volta, Leonardo vai lutar pela mulher...