19 Canto Noturno

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Gar não podia a deixar sozinha, e não por causa do estado extático no qual ambos se encontravam

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Gar não podia a deixar sozinha, e não por causa do estado extático no qual ambos se encontravam. Como imã Beatrice o atraía como se feito de ferro, atravessando o labirinto de sebes do jardim, sem se incomodar nem com o silêncio, nem com a perseguição dele. Os pés descalços e delicados afundavam na grama úmida, os dedos tocavam gentis as folhas e flores, virava-se de quando em quando para sorrir para ele.

Olhos brilhantes e misteriosos salpicavam no bosque adiante como vagalumes num mar de escuridão, a terra murmurava e gemia sob seus passos, a brisa cantava nos galhos. O bosque suspirou, clamou o nome de Beatrice e a princesa aceitou o convite. Os arbustos se dobravam a sua passagem, afagavam a pele macia, sacudiam-se ao contato dela.

Beatrice deitou-se no centro da clareira e se sentou ao lado dela. Dionísio saltitava berrante, dançando ao som da flauta de Pã, a melodia inaudível, conquanto pujante. Incomodava-o a falta de controle, o preço por concordar com as ideias de Andras encarecia. Beatrice esticou as mãos como se pudesse agarrar os algodões negros ondulantes do firmamento, indiferente aos faunos e sátiros, ou das ninfas as quais dançavam entre os galhos.

A mais potente das drogas estava no veneno ofertado, o tempo escorregava num relógio sem ponteiros, as flores e os arbustos competiam com o perfume da princesa, farejava como cão, via como falcão, pensava como louco. Uma merda sentir-se daquele jeito, e, no entanto, estava feliz, feliz como nunca provou da felicidade antes.

Havia algo de exótico nos lumes luminosos infiltrados no negrume noturnal, espiavam tanto eles quanto seus inimigos e amigos, vasculhavam tudo, cada fragmento de memória, cada som ou suspiro, cada palavra dita, todas as promessas quebradas. Dedos extensos como galhos viscosos e negros tocavam e esmiuçavam a alma. Ele e Beatrice estavam sendo julgados. O juízo final. Os anjos do apocalipse tocando as trombetas. Mares de sangue, lua de sangue, sempre sangue, o homem tinha obsessão ao sangue. Sangue azul, sangue real, sangue contaminado, dar o sangue...

— Sangue — Beatrice balbuciou. — Uísque é mais gostoso. Uísque azul, uísque real, uísque contaminado, dar o uísque. — Riu e afagou a relva.

Gar se debruçou sobre ela. Estava ouvindo seus pensamentos? Beatrice o sentia daquela forma? O conhecia tão profundamente? A envolveu no abraço e sem razão ficou a chamando como se estivesse em outra galáxia. Ria ao ser sacudida, todavia não despertava, perdida em outra dimensão. Bia estava fazendo tudo errado. Não devia confrontá-los, princesa. Acariciou o maxilar dela desejando que não fosse tão imprevisível, tão caótica. Por que não revelou o que precisavam saber? Por que prolongar a investigação? Beatrice estava perigosamente na beira do penhasco, pronta para se arremessar no abismo. E se preocupava.

Por que se preocupava com ela?

Dedilhou o rosto de Gar ao se sentar e entreabriu a boca, complacente, quando Beatrice afundou-se no beijo, suspirante, rendendo-se ao enlevo. O amava? Se preocupava com ele? Petrificado, o relaxamento evadia, queria fugir, no entanto, incapaz de se afastar da princesa, do cheiro, do roçar dos lábios, línguas e peles, apertava-a ainda mais contra si. E a feiticeira escapou de seus braços feito fio de água. Inquieto, intentava falar sobre sua agonia, mas as palavras dissipavam-se. O semblante de Beatrice foi tomado de divina formosura. O violeta dos olhos da deusa o envolveu como névoa densa, e todos os pelos eriçaram ao ouvi-la.

E o Verbo Se Fez Carne  ⚠️Completo⚠️Onde histórias criam vida. Descubra agora