O irmão Kun encarava os próprios pés descalços sob o chão de terra vermelha — a morte do pai Cornelius foi demais para ele, a pessoa mais importante em sua vida e responsável por ainda estar vivo, mas irmão Kun não queria estar vivo, não sem seu pai ali. Essa foi a deixa para Chico se aproximar — desde que nasceu, Chico foi ensinado que irmão Kun era especial, que os deuses ancestrais haviam o escolhido.
Mas o menino não acreditava naquilo, pois já viu o que acontecia nas noites de lua cheia e aquilo era uma maldição e não um dom dos deuses. Ele parou ao lado do irmão mais velho, sabia que Kun se sentia deslocado no quilombo, por destoar dos demais irmãos, entretanto ele ainda era um irmão.
Chico sabia da importância de pai Cornelius no quilombo, o quando ajudou vários escravos fugitivos, acolhendo-os ali, por isso entendia a missão que lhe foi dada a respeito do irmão Kun. O que os dois tinham era um laço que ia muito além de um legado.
— Irmão Kun?! — o mais velho ergueu os olhos na direção do menino e sua expressão era melancólica. — Vosmecê está bem? — o menino sentou ao seu lado no chão de terra. — Sente falta do pai Cornelius? Porque eu sinto — Chico encolheu os ombros
O menino em seus doze anos de idade, raquítico, a pele cor de café destacava-se em comparação na da de Kun, que apesar de ter sido queimada pelo sol escaldante nas lavouras, ainda assim não chegava perto de se parecer com as de seus irmãos do quilombo. Eles eram completamente diferentes, mas Chico o amava como se carregassem o mesmo sangue — o menino não cresceu como escravo, mas sabia o quanto aquilo afetava os demais irmãos, inclusive o próprio Kun.
Chico era um menino inteligente, seu pai o ensinou para ser, ter entendimento sobre sua ancestralidade e não esquecer de onde vieram, mas além disso, não esquecer o legado que fora passado pelo pai Cornelius e ele sabia que através da maldição de Kun, poderiam conquistar a liberdade.
— Todos estão lhe esperando para se despedir dele — Kun soltou um suspiro pesado, para logo elevar seus olhos ao céu.
— O que eu vou fazer agora, Chico? — questionou mais para si do que para o menino ao lado, que pendeu a cabeça para o lado. — O pai não está mais aqui para proteger as pessoas de mim.
— Ora irmão, eu estou! — o menino respondeu convicto e Kun o encarou com as sobrancelhas unidas. — Sou o legado do pai Cornelius e ele me instruiu a ser seu guardião!
— Não, Chico, 'ocê não pode... eu sou um demônio!
— Irmão Kun, vosmecê foi entregue ao pai Cornelius como uma bênção dos deuses para salvar nossos irmãos e irmãs do poder dos homens brancos!! — os olhos de Chico brilhavam e Kun não entendia toda aquela fé que lhe era depositado.
— Não posso controlar isso...
— Por isso estou aqui! — um largo sorriso de dentes brancos surgiu no rosto de Chico, fazendo com que o irmão o encarasse fascinado por enxergar o pai no menino, eles realmente eram pai e filho. — Agora vamos! — ficou de pé, esticando a mão. — Temos que nos despedir do pai Cornelius!
A cerimônia de despedida carregava todo peso de sua matriz, todos ao redor do corpo de pai Cornelius em respeito ao homem que ele foi e que sua memória estaria viva nos irmãos e irmãs do quilombo. Sua esposa se aproximou, beijando-lhe a testa — as lágrimas escorriam no rosto, pois aquele foi o homem de sua vida que a salvou das chicotadas do tronco e nenhum outro poderia substituí-lo.
Os olhos da mulher voltaram-se para Kun, que se aproximou receoso — ela antes não entendia o motivo de Cornelius manter ao seu lado como filho um menino branco de olhos puxados, o que não demorou para descobrir que se tratava do filho da mulher que seu marido amou anos antes e que o menino, já um homem era um condenado da própria sorte e aceitou que ele era um de nós.
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Beauty and the Beast (Qian Kun)
WerewolfUma jovem fugindo do seu passado, se ver envolvida em uma questão difícil de remediar... a fera solitária e amaldiçoada, que habitava a casa da colina era seu mestre, amigo, amante... seria a jovem bela a salvar a besta horrenda de sua maldição? Kun...